Esbanjando cultura inútil

 
O sol poente visto do hospital

 

Lembro meu esforçado leitor de que em outros tempos era imprescindível as pessoas aprenderem na escola certas particularidades, hoje perfeitamente abandonadas, como as capitais dos estados brasileiros, o trajeto ferroviário entre São José do Rio Pardo e Campinas, o superlativo de célebre e de nobre, o nome que recebia quem nascesse em Mônaco, a lista completa das preposições ou das orações adverbiais, entre outras tantas provas de sabença.

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Pela origem do vocábulo Márcio, ligado a Marte, marcial, eu deveria ser um guerreiro, mas nem sempre o tenho sido, levado pelo comodismo ou pelo ceticismo. E quantas Lauras, por definição louras, são morenas, ruivas, mulatas ou negras? Assim é que há muito Filipe que nunca viu um cavalo de perto, mas seu nome quer dizer amigo do cavalo, como Atanásio significa imortal, Platão o que tem costas largas, Teófilo amigo de Deus...

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Você sabe, por exemplo, onde nasceram indivíduos chamados malgaxe, tricordiano, ludovicense, portenho, soteropolitano, flamengo, bordalês, magiar, ulissiponense, helvético, belemita? Por favor, não se vexe se souber só dois ou três. Na Bahia usam uma denominação porreta: soteropolitano. É que alguém, há muito tempo,  foi buscar no grego este vocábulo formado por soterion (salvação) e polis (cidade). Claro que existe salvadorense, mas baiano que se preze jamais deixará passar oportunidade de empregar “soteropolitano”, palavra tão chique. Acredito na veracidade de um verso lá deles que garante: Baiano burro nasce morto!

E ludovicense? Aplica-se a natural ou habitante de São Luís do Maranhão. Sua origem está no termo latino Ludovicus, de onde se originou o popular Luís. Claro que existe são-luisense, mas convenhamos: os maranhenses, ciosos de sua bela tradição cultural, não perderiam azo de meter em conversas ou escritos um termo da categoria de ludovicense. Preciso conferir se o ilustre e polivalente político-escritor José Sarney, maranhense de nascimento, não empregou o belo vocábulo num dos seus livros que o guindaram à Academia Brasileira de  Letras. Flamengo, muito antes de ser o nome do mais popular clube de futebol do Brasil, já era o designativo de coisas relativas a Flandres, região situada parte na França e parte na Bélgica e que fala língua própria, exatamente o flamengo. Já imaginaram a dificuldade que seria para um flamengo legítimo entender o conhecido verso de Jorge Benjor –  sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa?

Tricordiano leva todo o jeito de ter sido inventado por algum severo e erudito professor mineiro, daqueles bambas em latim, in illo tempore. Se há a bela cidade de Três Corações, aliás berço natal de Pelé, quem nascesse por lá ou ali morasse não haveria de gostar de ser chamado de três-coraçõesense.  Daí alguém ter recorrido à língua de Ovídio e Virgílio para formar com o prefixo tri, com o substantivo cor, cordis o termo tricordiano.

Portenho também é um caso sério. Não há quem não saiba que o termo se refere a Buenos Aires, capital argentina. É que o nome todo da cidade era Porto de Santa

Maria de Buenos Aires. Claro que existe o menos romântico buenairense, mas não há como não preferir portenho. “Tangos buenairenses”, por exemplo, não caem bem.

Existem ao menos duas cidades de Belém: uma na atual Cisjordânia e outra é capital do Pará. Belemita (do latim bethleemite) só se aplica à cidade natal de Jesus Cristo. Quem nasce na cidade paraense é apenas belenense. Em Portugal existe um time de futebol – o Belenenses –, com certeza tendo como referencial a torre de Belém, erguida na capital Lisboa, em comemoração aos descobrimentos marítimos lusitanos. Nunca será demasiado lembrar a alta demonstração de cultura geral  proporcionada por um jogador de futebol que trocou São Paulo por Belém, contratado pelo Remo ou pelo Tuna Luso. Na primeira entrevista, despejou ao microfone:

- Tenho muito orgulho de vir jogar nesta bela terra em que nasceu Jesus Cristo!

Palavra bonita é helvético –  referente à Helvécia, nome latino da atual Suíça.

Ulissiponense é sinônimo algo pedante de lisboeta, lisbonense. Advém da lendária narrativa de que Lisboa teria sido fundada pelo herói grego Ulisses e se chamava em latim Ulyssipona.

Resumo o sentido das outras restantes: malgaxe, da ilha de Madagáscar; magiar, referente à Hungria; bordalês, da cidade francesa de Bordeaux, aportuguesada para Bordéus., famoso centro vinícola.

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Antes que me cobrem:

No trajeto ferroviário entre São José e Campinas havia as estações de Paula Lima, Vila Costina, Engenheiro Rohë, Itobi, Casa Branca, Lagoa, Cascavel (hoje Aguaí), Oriçanga, Mojiguaçu, Mojimirim, Jaguariúna e Guanabara. Terá faltado alguma?

Célebre > celebérrimo; nobre > nobilíssimo.

Mônaco > monegasco.

Preposições essenciais: a, ante, até, após, com, contra, de, desde, em, entre, para, por, perante, sob, sobre.

Preposições acidentais: exceto, durante, consoante, mediante, fora, afora, segundo, tirante, visto.

Orações adverbiais: causais, comparativas, concessivas, condicionais, conformativas, consecutivas, finais, proporcionais e temporais.

Ufa!

 

31/03/2018
(emelauria@uol.com.br)

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