OS VIDROS QUEBRADOS

  
Esta árvore caiu, faz tempo.

  

Li, já faz muito tempo, que na Universidade de Stanford, Estados Unidos, realizou-se uma experiência de psicologia social de imprevisível alcance.

Duas viaturas foram abandonadas na via pública, duas viaturas idênticas, da mesma marca, modelo e até da mesma cor.

Diferentes, mesmo, os locais em que ambas ficaram estacionadas: uma no Bronx, zona pobre e conflituosa da cidade de Nova York; outra em Palo Alto, região rica e tranquila da Califórnia.

Duas viaturas idênticas abandonadas, dois bairros com populações bem diferentes em tantos pontos de vista e uma equipe de especialistas preparada para estudar a conduta das pessoas.

Já se esperava que a viatura estacionada no Bronx fosse desde logo atacada. O que não se esperava era a rapidez do assalto: em poucas horas a limpeza foi completa; o veículo perdeu as rodas, o motor, os espelhos, o rádio. Bandos desorganizados levaram tudo o que fosse aproveitável. Aquilo que não puderam levar simplesmente destruíram, sem nenhuma razão plausível.

Diferente o tratamento dado à viatura estacionada em Palo Alto, que se manteve intacta enquanto a experiência durou.

 

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Cresceu na avaliação dos psicólogos sociais a esperável ideia de que seria a diferenciação econômica das duas populações  a principal, se não única, explicação para comportamentos tão díspares: um grupo social pobre depenando rapidamente o veículo estacionado nas redondezas; outro grupo social, de alto poder econômico, pouco se importando com aquela presença.

Em situações análogas os comportamentos eram sempre assim: coisa abandonada na via pública tornava-se fatal objeto de saque e de depredação se as populações das imediações estivessem perto ou dentro da chamada linha de pobreza. Quer dizer, se a intenção do experimento fosse tão simplista e imediatista, nada mais teriam os psicólogos sociais que observar, porque confirmada a batida tese de que pobreza e vandalismo são inseparáveis.

 

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No entanto, quando a viatura abandonada no Bronx já tinha sido desmanchada e a de Palo Alto permanecia impecável havia já uma semana, os investigadores quebraram um vidro do automóvel de Palo Alto. Imediatamente se desencadeou o mesmo processo de vandalismo ocorrido no Bronx: os furtos, o desmanche, a violência e uma forte sanha de destruição reduziram em pouco tempo o veículo a inútil carcaça.

 

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Era de se perguntar por que um simples vidro quebrado no automóvel abandonado em bairro supostamente seguro seria capaz de disparar todo o processo delituoso. Não se tratava de reação ligada à pobreza, mas se mexia com algo mais profundo da natureza humana e das relações sociais.

Os estudiosos chegaram à conclusão de que um simples vidro quebrado num veículo abandonado, seja lá onde for, transmite forte ideia de deterioração, de desinteresse, de despreocupação, que acaba por quebrar os próprios códigos da boa convivência humana, como vigência de lei, de normas, de regras, logo substituídas pelo vale tudo. A cada novo ataque sofrido pela viatura essa clara noção de anomia (ausência de governo) ganha maior vulto, até que a escalada de atos cada vez mais antissociais desemboque na violência irracional.

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Não foi difícil a outros estudiosos  a generalização desse conceito, de tal forma que ele pode ser aplicado em qualquer lugar e em qualquer tempo, independentemente de condições socioeconômicas e educacionais. Isso vale para qualquer aceitação que um grupo social manifeste quanto a pequenos estragos, pequenos descasos, pequenas falhas de vigilância.

Podem parecer sem correlação mínimas faltas que muitas pessoas se acham no direito de cometer e essa inevitável deterioração do convívio social. É o caso de estacionar, "por dois minutos" , em local proibido; exceder limites de velocidade; ultrapassar um sinal vermelho. Se esses corriqueiros deslizes sociais não são combatidos e punidos, dão margem à permissividade de faltas maiores e a delitos cada vez mais graves.

O mesmo ocorre quando se permitem impunemente atitudes violentas contra crianças, mulheres  e idosos.

Concretizando os resultados dessas ações delituosas, é só pensar em quantos locais públicos, que mereceram outrora a qualificação de recantos cordiais, de repente, pela inação dos órgãos competentes, são progressivamente abandonados pela maioria das pessoas, que deixam de sair de casa por temor a desconfortos e são ocupados por delinquentes ou apenas por grupos sem compromisso social algum.

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Lembro-me de haver conversado, isso faz perto de trinta anos, com um engenheiro do metrô de São Paulo e com ele ter comentado a limpeza e perfeita conservação dos vagões. Então ele me explicou o segredo daquela limpeza e daquela conservação: todos os dias os trens eram inspecionados com rigor, para que mínimos focos de sujeira ou de deterioração do material fossem detectados, a tempo de não serem estimuladas outras sujidades ou outros estragos. Faz tempo que não viajo de metrô, de forma que não sei o estado de seus vagões, mas pelas constantes manifestações populares contra atrasos e interrupções de viagens, quero crer que também o índice das prevenções e dos reparos de mínimos danos  tenha caído significativamente, com isso criando constantes oportunidades para depredações e outras visíveis ofensas a bens coletivos.

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Guardadas as distâncias, fico pensando na diferença do estado de conservação de nossas praças e logradouros. Acho muito bem cuidada a ilha São Pedro, quem sabe por cumprimento de exigências do Ibama.

Não acho aceitável o nível de cuidados com nossas praças centrais, com piso deteriorado, com bancos danificados e sujos. Dói nos olhos o estado deplorável de um velho retângulo de pedras diferenciadas no círculo central da Praça XV de Novembro. Não haverá como restaurá-lo?

Não acho também nada aceitável o descaso com o piso do Recanto Euclidiano, sem dúvida nosso local de maior significado cultural e turístico. Já nem se pode vislumbrar o desenho que está soterrado: um grande sol entrecortado pelas palavras básicas de Os sertões: terra, homem, luta, uma bela concepção de Enio Lamoglia Possebon. Aquelas pedras portuguesas desgarradas ou a falta delas dão mau aspecto ao local e surgem como convidativo estímulo ao vandalismo, tantas vezes já cometido contra a redoma que felizmente protege a cabana histórica.

A contígua área de lazer também impressiona mal, caminhos e trilhas erodidos, árvores de raízes expostas e prestes a cair.

Não se deveria ver locais tão significativos cada vez mais correrem o risco de ter o mesmo destino da viatura de Palo Alto com seu vidro quebrado.

 

30/03/2013
emelauria@uol.com.br

 

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