Argentina, argentinos

 
No quintal de casa.
 

A Argentina tem coisas muito mais importantes do que Maradona e Messi para nos matar de inveja. Podemos, ao menos, contrapor a eles Pelé e Neymar. Difícil é competir com vinhos, carne maturada e velhos tangos. Nem se esqueça de que Buenos Aires, apesar das dificuldades todas dos últimos tempos, continua a ser um centro cultural de grande expressão internacional. Teve, e ainda deve ter,  mais livrarias do que o Brasil todo.O país teve e tem uma literatura rica e criativa, um cinema de alto nível, jornais combativos, uma tradição teatral e operística da melhor qualidade,  um sistema educacional que já deixou o nosso lá embaixo. Perto do grau de politização do argentino médio, somos uns alienados sem perdão.

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Verdade que argentino não é fácil de suportar-se, ainda mais se eles constituem maioria, mesmo em terra alheia. No litoral brasileiro, em Camboriú principalmente,  às vezes chegam a nos fazer sentir no estrangeiro, tal a quantidade deles berrando e cantando naquele sotaque próprio de italianos que falam espanhol e pensam que são ingleses.

Daí a justa surpresa de brasileiros ante a prudência e a serena postura da moçada  que veio para a Jornada Mundial da Juventude. Nem parecem argentinos, segundo o unânime depoimento de quem os acolheu.

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Analisada friamente, a Argentina tinha, e talvez ainda volte a ter, todas as condições de ser um país de gente feliz: além da peculiar mistura de sua composição populacional, seu solo  tão fértil, com camada de húmus de mais de vinte centímetros, dispensa o uso de adubos: produz trigo e carne em notável quantidade; é autossuficiente em petróleo; fácil lá construir rodovias e ferrovias, graças à topografia muito favorável.

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O que desequilibra em nosso desfavor é o Papa Francisco, que tem todas as qualidades não próprias de argentinos. É modesto, humilde, compreensivo, alheio às pompas e regalias de sua condição de chefe da Igreja Católica. Aí fica difícil comparar. Dizem as más línguas que ele foi eleito papa porque era o cardeal de Buenos Aires, capital do Brasil, como sabe a maioria dos norte-americanos e europeus! Exagero, sem dúvida.

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Sua presença no Brasil deixará marcas indeléveis. Chegou dizendo que Jesus Cristo bota fé na moçada. E ele mesmo deu prova de fé e coragem quando, por incompetência sabe-se lá de quem, viu-se  literalmente nos braços do povo. Tinha de ser no Brasil que   comitiva  errasse caminho! Como escrevo na quarta, 24, espero que nada de grave tenha acontecido depois de sua triunfal chegada. 

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Cabe bem no espírito de um argentino culto publicar livro com este título --  A biblioteca à noite. Aos cinquenta anos de idade, Alberto Manguel  decidiu construir no interior da França a biblioteca apta a abrigar os  trinta e cinco mil títulos de sua propriedade, os quais ele considera, assim modestamente, o suprassumo do saber humano acumulado. É que ele parece não ter noção do que o Google.com  acumula em seus vastos arcanos, alcançáveis  em segundos.

Quando esteve em São Paulo para lançar A biblioteca à noite (Companhia das Letras, 55 reais), pôde lembrar fatos de sua vida incomum, como a de ter sido, na juventude,  o  leitor para Jorge Luis Borges, erudito escritor que ficara cego. “Quando li para ele, eu era apenas um adolescente. Nessa idade você sente o impulso de fazer algo e o faz sem pensar, vivendo a  experiência irrefletida  do momento. Mais tarde, recordando tudo isso, senti-me um privilegiado, porque o ato de ler era meu, mas a leitura não. Eu era, então, apenas uma testemunha de Borges. Ele escolhia o livro e ditava o ritmo, interrompendo-me quando considerava incorreta a maneira de narrar”.

Além de leitor de Borges (impossível ignorar sua importância mundial de Borges, com Aleph, com Ficcionário, entre tantos livros),  Alberto Manguel viajou o mundo todo com o pai embaixador. Perguntado sobre a influência disso tudo  em seu projeto de reunir o conhecimento universal num só lugar, ele discorre:

- Creio que existe algo mágico no encontro de uma pessoa com outra e mesmo de uma pessoa com um livro. Há anos descobri o lugar ideal para instalar minha biblioteca -- nesse lugar um dia existira um dos dois castelos de Tristão, o Eremita. Tudo o que havia sobrado era um muro.

E qual justificativa deu para a difícil tarefa de levantar a enorme biblioteca?

- Tenho sede de conhecimento, mas não no sentido acadêmico.Vale dizer, não sou sistemático. Lembro-me de um episódio engraçado ocorrido recentemente numa palestra que fiz no Canadá. Após a conferência, um professor sintetizou  minhas preocupações numa única frase, o que pode transmitir uma ideia aproximada de como pensam os acadêmicos. Enquanto eles preferem ir direto ao ponto, ao tronco, eu prefiro os galhos. Talvez minha experiência de trocar de línguas e de países o tempo todo tenha algo a ver com esse modo de encarar o mundo, um modo amador, que se surpreende com tudo e que também enfrenta grandes barreiras práticas.

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Gostei desse modo amador de encarar o mundo. Quem não o pratica perde excelentes oportunidades de ver as coisas de maneira menos séria, menos de busca da verdade a qualquer preço, a custo até da felicidade pessoal, que nunca vem em blocos, mas pode e deve ser urdida de pequenos fios, de pequenas frases, de pequenos gestos que um acadêmico engajado jamais se permitiria examinar com mais paciência e menos espírito cartesiano.

Indagado sobre a crença em Deus, tem uma tirada de bom efeito:

- Acredito na Graça. Acredito que algumas pessoas são tocadas por algum dom e capazes de ser boas, mesmo sem ter a consciência de serem boas.

Manguel comenta, por fim, a frase atribuída ao escritor inglês D. H. Lawrence (aqueles do terrível Mulheres apaixonadas, que trata da homossexualidade feminina ), segundo a qual atravessamos uma era trágica, mas a sociedade contemporânea  convive com ela sem entendê-la. Parece capaz apenas de compreender a linguagem do melodrama:

- Não sofremos menos que os gregos, mas sofremos de um modo diferente e somos relutantes em refletir sobre essa tragédia. Preenchemos os nossos espaços vazios com barulho, para não prestar atenção nela. Perdemos a liberdade, a imaginação, nossas emoções e o poder criativo em nossa sociedade.

De se pensar, não?

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Um amigo brasileiro, residente em Londres, manda-me em espanhol uma boa quantidade de frases que correm mundo como sendo grafitti argentinos – coisas escritas em muros, banheiros e outros locais fora de qualquer forma de censura imediata. Não há como garantir que elas sejam todas argentinas, porque muitas delas mais parecem coisas de brasileiros meio desiludidos com o que veem por aqui.

 

Transcrevo algumas, sem ter como assegurar sua origem platina.

 

LÁ COMO CÁ

Na Argentina, temos os melhores parlamentares que o dinheiro possa comprar.

 

TUDO CANSA

Chega de realidades, queremos promessas.

 

O PERIGO DOS AVANÇOS

O país estava à beira de um precipício e demos um passo à frente.

 

A IMPORTÂNCIA DA LETRA “X”

A dívida que  a Argentina tem não é externa, é eterna.

 

É PRECISO MANTER O NÍVEL

As inundações não ocorrem porque os rios crescem, mas porque o país está afundando.

 

QUESTÃO DE ESTRELA

Alguns nascem com sorte; outros, na Argentina.

 

O CONCEITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Proibido roubar, o governo não admite concorrência.

 

MÃES & FILHOS

Às prostitutas o poder, porque com os filhos delas não nos demos bem.

 

MILAGRES DA GRAVIDADE

Este governo é como um biquíni, ninguém sabe como se sustenta, mas todos querem que caia.

 

PALAVRA DE DUPLO SENTIDO

A Argentina é uma granja  fechada por falta de ovos.

 

27/07/2013
emelauria@uol.com.br

 

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