Terça magra

 

São imprevisíveis, mesmo, as reações de nossos diferenciados leitores. Estou lembrando agora a severa crítica que recebi de uma senhora que achou muito machista e comodista meu relato a respeito do que eu fizera na manhã de 25 de dezembro. Contei sobre minha caminhada na Área  de Lazer e as pequenas passagens que presenciei: a alegria do menino que dera a si mesmo o sonhado presente – uma bicicleta; o peixe prateado fisgado pelo pescador de mandis; a decepção do jogador de bochas ao ver fechado o local onde ele queria se divertir com a família. O ângulo de observação de minha missivista foi original:

“Isso que você relatou sobre sua manhã de Natal é típico de homem. Levantou-se à hora que quis, saiu por aí sem compromisso, observando pessoas e coisas, enquanto certamente as mulheres de sua casa, depois de se esfalfarem na preparação da ceia, ainda tiveram de recolher tudo, lavar tudo e se preocupar com o que serviriam no café do dia seguinte para o bando de pessoas   que baixou em sua casa, acordou tarde e com um apetite de limpar geladeira!”

Fico imaginando que na casa de minha realista leitora tenha sido assim, com quase toda a carga de trabalho caindo sobre ela e demais mulheres, enquanto os homens sairiam por aí, lisos e lépidos, como eu. Na minha casa não foi.

Pois nestes dias de carnaval tenho saído diariamente bem cedo e zanzado por aí, apreciando as sujeiras de tanta folia com base na explosiva mistura samba-suor-cerveja.   As notícias que aqui chegam têm um viés de suspeita – os moços gostam de tudo, topam tudo, sujeitam-se a quase tudo. Agora, que as músicas abaianadas são  de uma falta de gosto de fazer dó – isso ninguém discute. Ah, as marchas, as marchas-ranchos de João de Barro, morto há pouco tempo, às portas dos cem anos, elas fazem muita falta. Sem saudosismo barato, apenas uma pontinha de respeito ao que nasceu espontâneo, bom e duradouro. Será que alguém sabe de cor uma daquelas bobajadas cantadas pela Sangalo ou pela Mercury?

Quanto à Área de Lazer, ainda estão lá as duras marcas das enchentes:  árvores arrancadas, barrancos derruídos, detritos por toda a parte, locais intransitáveis. Merece uma guaribada no capricho, assim que o tempo firmar e o nível do rio se estabilizar. De modo geral, os rio-pardenses residentes não dão importância alguma àquele local, uma dádiva da natureza que os homens podem preservar e melhorar com muito pouco gasto. Alguém de alguma posse e muita sensibilidade bem que poderia adotar o recanto que causa admiração, inveja e muita frustração aos seus visitantes. O local é potencialmente lindo, mas muito descuidado.

Vejo no canal Telecine Cult um filme elogiadíssimo em outros tempos – Fahrenheit 451, do diretor francês François Truffaut, produção de 1966, com Oscar Werner e Julie Christie.

1966! Brincando, brincando, lá se foram quarenta anos e com eles também a beleza clássica de Julie Christie, nem sei se viva, nem sei se avó. Sei que ela está muito bela, não tão bela  e insinuante como estaria tempos depois em  Lara, do inesquecível e em certos pontos insuperável Dr. Jivago.

E então me vejo frente ao dilema: ou meu leitor sabe do que estou falando, ou não sabe. Se sabe, não preciso explicar muito, porque as pessoas têm dentro de si não apenas a fisionomia de Lara, mas o tema musical que até hoje perdura como das mais belas músicas feitas a propósito para um filme. Se não sabem, não há como explicar  a magia do cinema antes desse domínio avassalador da televisão e de seus subprodutos, como a fita de vídeo, o DVD e o que mais vier por aí. Falo do cinema um tanto ritualístico, a que se vai com expectativa,  emoção e respeito. Não me acostumo  com a atual realidade --  poltronas confortáveis, projeção ótima, som estereofônico, mas  por perto alguém falando alto, devorando um saco de pipoca ou abrindo latinhas de refrigerante!

Perto do que os filmes de ficção científica inovaram graças à computação gráfica, Fahrenheit 451 envelheceu rápido, apesar de sua fidelidade ao livro homônimo  que lhe deu origem, do norte-americano Ray Bradbury. O personagem principal, Montag, pensa que é feliz; tem um bom emprego, uma família, uma casa dotada dos confortos máximos do seu tempo. Mildred, a esposa, também não tem motivos de queixas, porque passa as horas ligada à sua família virtual, no televisor interativo que toma a parede toda.

Profissão de Montag – bombeiro, não com a tarefa de apagar incêndios, mas de provocar incêndios específicos, incêndios de queimar todos os livros, proibidos pelos mandantes de plantão, usando para isso lança-chamas cuja temperatura adequada é a de 451 graus na escala Fahrenheit.

Movido por natural curiosidade, Montag poupa da destruição imediata  alguns livros, que passa a ler com dificuldade e  crescente avidez. Dentre eles, Oliver Twist, de Charles Dickens. Com essas leituras, a sua  felicidade postiça se quebra, porque ele começa a pensar, torna-se um indivíduo, ganha o sentido da curiosidade intelectual e pergunta a si mesmo quanta coisa importante haverá naquelas páginas que queima, que levam um crescente número de pessoas a arriscar a vida para tê-las em casa, ou mesmo a renunciar à vida quando suas bibliotecas são descobertas. Montag aprimora-se na leitura, começa a furtar livros, a transformar-se num intelectual, o que, naquela sociedade, queria dizer marginal.

Tenta em vão fazer com que a mulher comece a pensar. Acaba denunciado por ela mesma, perseguido como inimigo da sociedade, como traidor, num mundo que lhe é hostil. Não tem outra solução que não a de internar-se às cegas pela floresta, onde encontrará tantos outros perseguidos  amantes dos livros que se dedicam a estranha missão: na esperança de que no futuro a repressão contra os livros acabe, cada um se encarrega de decorar, de memorizar totalmente o texto de um deles. É a essa obrigação a que se dedicam o tempo todo – ser cada qual o conservador de uma obra-prima da literatura, que voltaria a ser impressa quando os maus tempos acabassem...

A cena final do filme é exatamente uma visão panorâmica das pessoas e dos nomes dos livros que sabem de cor, preservando-os para o futuro...  Desfilam os títulos dos melhores livros ingleses, franceses, alemães, russos, italianos.

Crítica inevitável: dedicando-se exclusivamente à manutenção da memória de uma só obra, aquelas esforçadas pessoas, verdadeiras mantenedoras das riquezas acumuladas ao longo de milênios por  todos os povos, como que traduzem a perigosa idéia da superespecialização (tão grata aos detentores da ciência de hoje), através da qual alguém saberá sempre mais a respeito de sempre menos, perdendo-se a noção de um conhecimento genérico que em última análise faz milhões de pessoas  detentoras de um insuperável bem – a cultura.

Ora, suspirarão aliviados muitos incautos de hoje em face do número espetaculoso de livros hoje à disposição do público. Na verdade, muito se publica e pouco de sério se lê. Os livros já não são queimados. Mas quantos não estão ganhando pó nas prateleiras, enquanto milhões de seres como Mildred não têm como enfrentar as complexidades do mundo que as rodeia e se refugiam nas telenovelas, nos concursos de escolas de samba, nos telejornais de superficialidades e nos big-brothers  que as reduzem a consumidoras obrigatórias de atrações de ínfima qualidade?

 

24/02/2007
(emelauria@uol.com.br)

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