Cuidado com o sic

 
Inverno na Praça.

 

Todo jornal que se preza tem um local de destaque em que alguém expõe a coloração política e filosófica do órgão.

Leitor do Estadão sabe que na terceira página do primeiro caderno está expressa a opinião do jornal, manifesta em artigos por vezes chatérrimos e sempre sem assinatura: são os editoriais. Ali está o que os donos do jornal pensam a respeito de tudo, desde a quadratura do círculo até a matança das focas por pescadores japoneses, passando pela justiça de um prêmio Nobel e pela desgraça que é a gastança do dinheiro público para a Copa e a Olimpíada. Muita gente sistematicamente não os lê, outros começam e não terminam, outros ainda  aprendem alguma coisa com aqueles anônimos articulistas, todos bons conhecedores da língua e com vasta experiência humana.

No mínimo um desses artigos diários (quase sempre são três, dizem que escolhidos entre seis) fala do governo. Nos dias atuais fala mal do governo e dos governantes federais.

Um dia destes, o título do primeiro deles era “As mágicas eleitorais de Dilma”, em que se comenta o que a presidenta da República escreve em sua conta do Twitter.

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(Que coisa interessante  esse Twitter, espaço da internet em que as pessoas escrevem o que querem,  desde que sejam breves. Em inglês o termo tem basicamente dois sentidos: criticador, zombador, censurador; gorjeio, trinado, riso em surdina.  Não sei como o termo seria traduzido em vernáculo. Acho que nem  o  será, porque já vi empregado por aí o verbo tuitar, em prova cabal de como usuários de nossa língua  são rápidos no gatilho e não têm o mínimo pejo de se apossar de termos alheios, dando-lhes um jeitinho brasileiro. Ora, se já criaram o verbo, por que não o substantivo tuíter?)

 

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Mas volto ao editorial do dia 19 de novembro. O articulista dá a entender que nossa autoridade maior  deve ter lido Cândido, o admirável livro de Voltaire que apresenta ao mundo o Dr. Pangloss, símbolo universal do otimismo contagiante. Sim,  porque segundo ela, tudo no Brasil vai no melhor dos mundos e ela anda pensando muito mais no seu problema pessoal de reeleição do que nas grandes causas do País.

O que mais me chamou a atenção, porém, foi a sutil maneira de o editorialista passar a seus atentos  leitores uma ideia  das mais desmoralizantes: nem ela, nem sua possível equipe de  escribas bem remunerados –  os tais ghost writers – deram com uma quase imperdoável impropriedade linguística: a paronímia.

O fato é que nossa autoridade suprema escreveu ou endossou esta frase: “O Brasil tem uma economia sólida e por isso tem recebido investimentos externos vultuosos, como comprova o leilão de Libra”. Entendeu? Pois o articulista não se conteve e meteu depois do termo “vultuosos” um sic grifado e entre parênteses. Sic, em latim, significa “assim”, “assim mesmo”. Ainda não entendeu?

Quando alguém usa o tal sic em citação de frase alheia, quer dizer que esse alguém nada tem com a tal frase e a batatada nela contida deve ser atribuída ao autor da frase e  não a quem a cita.

A esta altura meu mais paciencioso leitor já deve estar pensando mal de mim, que eu vou enrolando a quem tenta me ler.

Nada disso. Agora farei como Machado disse a outro propósito: vou amarrar as pontas soltas do episódio.

Não é raro que pessoas empreguem mal palavras semelhantes a outras. Dilma fez isso: usou vultuoso quando a frase exigiria vultoso.  Esses dois termos são parônimos, ou seja, são parecidos, mas têm origens e significados diferentes. Em outros tempos,  professores de Português apresentavam a seus alunos um alentado rol desses parônimos e depois cobravam isso em provas.

Vultuoso quer dizer atacado de vultuosidade, congestionado, referindo-se   ao rosto de uma pessoa. Cito Coelho Neto, o escritor brasileiro que possivelmente era dono do mais vasto vocabulário, cerca de setenta mil palavras:  “O rosto vultuoso, cianótico, empolado em vergões”... Muito provável que por causa de sua riqueza de palavras é que ninguém mais lê Coelho Neto e sua vasta obra. Isso de manter  um olho no texto e outro no dicionário não casa bem com a pressa dos nossos leitores.

Vultoso significa volumoso, de grande importância. Releia a frase presidencial e sinta que ´”vultoso” é o termo que cabe.

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Imagino o júbilo do autor deste sic por ter achado um errinho na escrita da primeira mandatária. Sim, porque para o pessoal mais chegado ao perigoso assunto de correção frasal, detectar mancadas alheias é prazer dos grandes.

Eu mesmo  mando sempre para a Folha de S. Paulo meu comentário a respeito de erros gramaticais que encontro na edição eletrônica. Eles corrigem o texto e me agradecem.

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Refresco a memória de meus fiéis leitores com  uma relação mínima de perigosos parônimos:

- sessão:  espaço de tempo que demora uma reunião. Sessão de cinema; sessão espírita

- seção ou secção: divisão, repartição. Aluno da seção “A”;  seção eleitoral

- cessão: ato de ceder. Fazer cessão de sua parte na herança;  cessão de direitos

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- cessação: ato de cessar. Pediu-se a cessação dos conflitos.

- secessão: ato de separar. Guerra da secessão americana.

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- excitar: provocar excitação, estímulo. A luz forte excitava os sentidos

- hesitar: ter dúvida, titubear, falhar. O goleiro hesitou ao sair da meta

- êxito: sucesso. Nada tem a ver etimologicamente com os dois termos acima. Não existe a forma exitar.

 

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- flagrante: ardente, inflamado, evidente. Ser apanhado em flagrante. Flagrante do crime.  Relaciona-se com flagrância.

- fragrante: odorífero, perfumado. Relaciona-se com fragrância

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- acidente: acontecimento casual, fortuito.  Acidente de trânsito

-  incidente: ocorrência, choque de ideias. Incidente em Antares  (livro de Érico Veríssimo)

 

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MARTELADA EM JOELHO ERRADO

O confrade Marcelo Trecenella, no apetitoso encontro de domingo passado no Centro Cultural Ítalo-Brasileiro, depois de dizer que lê o que escrevo, o que muito me agrada, chamou-me cavalheirescamente a atenção para um erro histórico que cometi num dos últimos artigos.

Fez-me ver que andei dando martelada em joelho errado: o famoso parla de Michelangelo não foi proferido à vista da perfeição da estátua de  Davi, mas sim da de Moisés.  Marcelo, turista cultural, sabe até os locais da Itália onde as duas se encontram hoje.

E olhe que tenho intimidade com o episódio desde a primeira vez que bati os olhos no texto, para mim  insuperável, de Judas-Ahsverus, de Euclides da Cunha, em que o seringueiro nordestino, perdido nas solidões da Amazônia,  faz um Judas à sua imagem e semelhança e também tem ímpetos de gritar o seu parla! ansiosíssimo.

Mille grazie ao Marcelo pela corrigenda. E quantos mais erros, históricos, cronológicos,  linguísticos  e conceituais,  não terei cometido ao longo desta longa vida de escriba por diletantismo?

Herrar é umano, apregoam por aí.

 

16/11/2013
emelauria@uol.com.br

 

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