Dos pequeninos bichos da Terra

 

A ESTUDANTE E SEU PROTETOR

Não me comoveu nem me convenceu a já requentada história da estudante norte- americana, bolsista numa cidade do interior de Minas, que sumiu sem mais nem menos  e por isso mobilizou organismos nacionais e internacionais, preocupados  com a triste possibilidade de tudo acabar em  seqüestro seguido de estupro, no mínimo. Aí, no meio do pânico, ela aparece toda flozô, sob a competente proteção de um baiano desempenado, o herói que a salvou de uns ratos de praia. Ela explicou que não sumira, nem alimentara a intenção de preocupar ninguém: apenas tinha saído por aí, sem lenço nem documento, e lhe batera enorme vontade de dar um pulinho até a Bahia, de que tanto ouvia dizer.

O que aconteceu a ela, em outros tempos mereceria a pedante classificação de journéé de doupes, uma comédia de erros. Eta mocinha destrambelhada, para dizer o mínimo. Pôs de pernas para o ar a vida de uma família que, sob a égide do Rotary Clube, a acolheu com a hospitalidade mineira – já se vê que pra lá de boa, cheia de cuidados, de mimos, de feijão tropeiro, leitão à pururuca e doces mil. Também complicou os dias de seus pais biológicos, que no desespero da falta de notícias,  acabaram vindo buscá-la muito antes do previsto aqui nestas lonjuras de país de terceiro mundo.

O mais surpreendente, porém, foi o cavalheirismo do estudante baiano que, arranhando um bocadinho de inglês, a livrou das garras dos dragões da maldade e  bem que quis até hospedá-la em sua própria casa, se lá houvesse espaço para mais um respirar. Aí, conduziu a trânsfuga para a casa de uma amiga dele, que também sabia o que significa I love you e The book is on the table. Nada mais, para eles, funcionou a contento por vários dias, nem telefone fixo, nem celular. Ninguém teve a mínima curiosidade de ver sequer um noticiário de televisão. Um caos ou um éden. Foi preciso haver denúncia de estranhos para a jovem ser localizada e devolvida a quem de direito.

Que raio de lição se pode tirar desse episódio inusitado? Fundamentalmente, que a maioria das pessoas adolescentes não tem bom poder decisório, embora às vezes aparentem maturidade de espantar e de envergonhar adultos. E o baianinho todo circunspecto, segurando firme a mão da jovenzinha e olhando impávido para o futuro, como se tivesse absoluta certeza de tudo quanto fazia? Sei não. Ele vai ter muito que explicar (não a nós, mas à namorada, mas à baianidade machista) sobre sua impassibilidade sueca no  relativamente longo convívio com a rechonchudinha Mykensie Martin, do estado de Oregon. Dela só lhe restou, ao que diz, o endereço eletrônico...

 

MAIS UM VILÃO: O CARRAPATO-ESTRELA

 Como se não bastassem os riscos e os danos da febre aftosa e da gripe aviária, de repente outra ameaça potencial – a febre maculosa causada pelo carrapato-estrela.  Qualquer criancinha de pré-primário já sabe, “maculosa” quer dizer “que causa manchas”, manchas na pele da vítima.

D-u-v-i-d-o que alguém nascido em cidade nos últimos cinqüenta  anos já tenha visto um carrapato-estrela, além daqueles expostos em close nos horários todos de televisão. No entanto, em outros tempos, andando-se pelos enormes pastos que hoje se transformaram em bairros como Bela Vista, Vila Verde, Jardim Aeroporto, Jardim Margarida, altos da Vila Pereira, corria-se o risco de apanhar algum deles. Sua picada era traiçoeira, parecia anestesiar; penoso seu arrancamento da pele. O local por ele agredido ficava infeccionado semanas inteiras, mas nunca se ouviu falar da tal febre maculosa e seus efeitos até mortais.

Quando meu tio Marcelo Bertocco passava a raspadeira de ferro no pescoço, no dorso, nas ancas e na barriga do  velho cavalo Guarani, lá na casa do Buracão, as galinhas soltas do quintal ficavam ligadas ao que caía no chão. Disputavam com avidez umas bolinhas que se desprendiam do animal e até pareciam jabuticabinhas quase maduras. Eram carrapatos-estrela  estourando de tão cheios de sangue. Um banquete, os frutos da raspagem.

De carrapatos, desses comuns, conheço o caso acontecido com  amigo meu,  um ano à minha frente no Ginásio e criado em deliciosa fazenda perto de São Sebastião da Grama, no caminho para Poços de Caldas. Ele passava a semana aqui em São José, para estudar, morando na casa de um irmão. Depois de muita andança na fazenda, ele se queixou de terrível dificuldade de urinar. Levado ao médico, foi-lhe retirado cuidadosamente um bem-nutrido carrapato que lhe obstruía o fluxo urinário. Sufoco daqueles, inesquecível por muitos anos. Só uma sonda passada pela uretra lhe aliviou aquela situação aflitiva. Algumas semanas decorreram antes que todas as seqüelas da incomum incursão   por regiões tão delicadas desaparecessem de todo.

 

QUASE NADA  É CULPA NOSSA

 Segundo o respeitável livro Uma Breve História do Homem, há uma espécie de supervalorização humana nas afirmativas, científicas ou não, que fazem de cada qual de nós um devastador ou conservador em potencial do planeta Terra. Manifestações como a febre aftosa e a gripe aviária estão com exagero sendo vistas como integrantes de um complexo sistema de extinção da vida no planeta, juntando-se a tsunamis na Ásia, a furacões na América, a terremotos na Cachemira, a extremos climáticos em toda parte. Sem os Estados Unidos assinarem o tal Protocolo de Kioto, regulando e tarifando a emissão de poluentes; sem se deter o desmatamento da Amazônia; sem o Greenpeace substituir a Organização das Nações Unidas; sem um substancial controle da fome e da natalidade, o mundo estaria a um passo do fim.

A idéia trazida à discussão nesse livro de autoria  do historiador inglês Michael Cook torna mínima a capacidade de intervenção humana no demoradíssimo processo de elaboração do fim do mundo, um fim, aliás, que, segundo ele,  começou em outras eras geológicas, quando nem se cogitava da existência do homem e suas intervenções na economia planetária. Ou por outra: as maiores devastações do meio ambiente são causadas pelo próprio meio ambiente. As vingativas respostas da natureza seriam muito mais uma figura da  retórica do homem,   sintomas de sua megalomania e falsa onipotência do que da sua capacidade de participação . A natureza não fica furiosa, assim como não é sábia. A natureza nem irracional pode ser. A natureza simplesmente é. Atende naturalmente  seus propósitos de longuíssimo prazo, que sequer consideram a existência do homem.

Segundo Cook,  os últimos dez mil anos – período chamado de holoceno pelos geólogos, são caracterizados por altas temperaturas e extraordinária estabilidade climática, indispensáveis ao florescimento da vida humana. Sem a conjunção desses dois fatores, não haveria História. Assim, o aquecimento global (tão temido) seria apenas uma característica do holoceno, período de curta duração que será substituído por cem mil anos de intenso frio, ainda não se sabe a partir de quando. Quem viver, verá...

 Nem é preciso dizer como Michael Cook ganhou a abominação de qualquer ecologista que se preze, exatamente por anunciar a pouca ou nenhuma capacidade humana de exercer o mínimo poder na determinação do futuro do planeta.

Em outras palavras e com outros argumentos, Cook repõe em circulação o conceito seiscentista de Luís Vaz de Camões a respeito do homem ante a potencialidade das forças naturais: pequenino bicho da Terra...

Pouco, muito pouco, não?

           

19/11/2005
(emelauria@uol.com.br)

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