Terra nossa

 

 

Daqui, do posto das adiantadas idades a que se chegou tão imperceptivelmente rápido, o passado se estende para muito além de nossas vidas e o futuro se projeta entre as brumas do incógnito, para muito além do que nos será dado presenciar.

Nascidos e criados no tempo das grandes conquistas, das grandes acelerações e também da concretização de tantas profecias visionárias, sentimos com paciência e compreensão o arcaísmo e o conservadorismo de nossos antepassados e com desassossego e sobressaltos as linhas dos pensamentos que agitam as mentalidades de nossos pósteros.

Tudo isso é visto e acompanhado quase que do mesmo ângulo, descontadas apenas as passageiras incursões por terras estranhas e o debruçar sobre muitas fontes que aprimoraram nossa inata capacidade de assimilar, de adaptar, de personalizar.

A memória ainda não trai. A um fictício aceno, a cidade dos anos trinta se reabre na modorra das ruas pacatas, no canto dos galos tramando os amanheceres, na imutabilidade dos cães bernentos, nos baques duros das carroças puxadas a burros – aqueles burros que atendiam tanto à voz quanto ao estralo de advertência dos carroceiros. Reabre-se nítido o Buracão, nossa casa no ângulo da Rua do Paraíso, a casa de nosso avô, as casas de nossos tios, a capelinha, as terras de um dono só, que avançavam a perder de vista, tomadas de macaubeiras e juás-bravos. Eram imensidões disponíveis e palmilhadas a pé nos compridos dias de calor, para na volta se contar com a perene certeza do amor, do aconchego doméstico, traduzidos também nos cheiros peculiares, nos sons esperáveis – até o sino das dez da manhã, lá longe, no Asilo.

Depois, a breve passagem no sobradão da Treze de Maio, assombrado a seu modo, misterioso nos porões proibidos. Cena fixada: um caixeiro da Casa Nascimento fazendo faxina em altíssimas prateleiras de onde expulsava com desdém nobres artigos, de repente relegados à mais completa inutilidade, como punhos e colarinhos de celulóide, espartilhos guarnecidos de barbatanas que só umas grossas amarras teriam, em outras épocas, conseguido apertar. Tudo posto na sarjeta da rua de terra, tendo o lixo como destino final. Bem ao lado, faceando o Hotel Brasil, o tentador mundo das mesas de bilhares de Luís Greco, que nenhum pai de juízo poderia mesmo franquear à visão encantada de meninos de sete anos. Aquilo era só para aqueles desconhecidos viajantes envoltos nas nuvens de fumaça de seus charutos e cachimbos.

Ah, a distante ida para os largos espaços da Várzea, com seus córregos então generosos em lambaris, com suas boiadas que estouravam, o campinho do Rio Pardo, a goiabeira-trampolim, a casa em cima do córrego. A presença vigilante do arvão da pracinha, abatido e reduzido a gravetos em traiçoeira manhã, sem uma voz pública em sua defesa.

O “Cândido Rodrigues”, de repente tão longe, mas insubstituível. A vontade natural de aprender, a influência amável de D. Cândida, de D. Zita, de D. Isaura, de D. Laudelina. A Praça do Mercado tão lavada, sem canteiros, sem flores, sem sombras. Seu Edésio – o terno branco de linho, o corpo retaco, a tosse, a voz rouca. “É preciso pôr o menino no curso de admissão”, ele não sugeriu, mas como que intimou, decretou.

O “Euclides da Cunha”, para nós incorruptível em sua majestade, superior a todas as pequenezes de homens sem afeto e sem brilho. Os quase endeusados professores, os/as colegas, a descoberta do corpo e dos sentidos, dos sentimentos e do amor. Quem imaginaria uma convivência de mais de três décadas?

Para as aspirações dos avós, aquele diploma de ginásio já era muito mais que o permitido aspirar: saber um ofício – sapateiro, alfaiate, barbeiro, mecânico. Para os pais, um diploma de normalista lhes assegurava a inefável sensação do dever cumprido.

Em realidade, abertas as largas portas das oportunidades, nada mais nos bastava, nada mais impossível ou insuperável o obstáculo. Daí nos faltar, felizmente, a capacidade de medir o orgulho que causávamos a todas aquelas pessoas que nos amavam e tinham seus anseios pessoais tão pequenos. Nossas vitórias, por menores que fossem, davam a elas todas mais uma prova de ter valido a pena abandonar longes terras, meter-se pelo oceano, lutar contra o que lhes viesse pela frente. Nós, os netos de imigrantes, concretizávamos sonhos alheios. Não era propriamente o ficar rico, era o ser aceito, o participar em pé de igualdade, o ser gente da terra, respeitados todos nós, inseridos todos nós que já não éramos os italianinhos, os turquinhos, os portuguesinhos, os espanhoizinhos, apenas brasileiros que amávamos nossas famílias, respeitávamos nossas raízes, mas tínhamos uma só e apaixonante Pátria – o Brasil.

Ora, direis, quem ainda se lembra disso tudo? – Exatamente na desnecessidade de lembrar é que está o legado da integração que ofertamos aos nossos filhos, aos nossos netos. Temos conseguido, milhares de nós, só nesta cidade, buscar em nossas distantes origens o que bem quisermos, como um arraigado sentido de família, o santo horror ao desperdício, a pedagogia do exemplo, a assimilação das lições da História. Fizemo-nos lealmente conterrâneos de Tiradentes, José Bonifácio, D. Pedro I e II. Estes os nossos heróis, este o passado comum que adotamos e cultivamos. Nossas visões do presente e do futuro só nos ligam ao Brasil. É só pelas suas vicissitudes e glórias que sofremos e nos alegramos.

Esta nossa geração, que conheceu as faces sulcadas e os corpos derreados de nossos avós – gastos no trabalho e no afã de iluminar alheios dias futuros, esta nossa geração testemunhou o lento desgaste de antigos valores, as penosas adaptações daqueles que vieram para ficar e nos permitiram assumir e exercer nossos papéis, como os exercem os mais bem-intencionados dentre todos os brasileiros de todas as raças e de todos os sangues.

Estas reflexões todas, nas vésperas de 19 de março organizadas de modo peculiar, procuram retratar o que aconteceu por todo o Brasil, ao longo do século vinte. Isso foi intensamente verdadeiro, para felicidade nossa, nesta cidade de São José do Rio Pardo que os imigrantes ajudaram a construir, dando-lhe uma feição bem ao gosto de nossos maiores, hoje nomes piedosamente guardados na memória familiar e coletiva.

(2002)

 

17/03/2012
emelauria@uol.com.br)

 

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