Três livros de peso

Fico feliz por ter tido disposição de ler três pesados livros que filhos me deram de presente  no Natal de 2009. Ao todo foram duas mil páginas que me exigiram  capacidade de concentração e firmeza de vontade. Isso na minha idade e tendo derivativos como tevê com um mundo de canais e mais internet,  não é pouco.

Já sei: algum apressadinho logo dirá que do final de dezembro pra cá leu cinco ou seis livros e não contou a mínima vantagem por causa disso. Tampouco anunciou pelos jornais.

Mas, como já dizia não sei quem, há livros e livros. Os livros que me deram tinham algumas características inconfundíveis: não eram de autoajuda, não tinham ilustrações de página inteira,  tratavam de assuntos incomuns, eram teóricos e tinham extensão muito acima da média. Vejam se não:

 

1. Comunicação popular escrita, de Américo Pellegrini Filho (Edusp, São Paulo, 2009), tem 695 páginas e é considerado obra de referência, ou seja, você lê o que quiser, na ordem que bem entender, quando  precisar. É mais para consulta, mas tem o caráter de pesquisa mundial, porque analisa 14.014 grafitos de 107 países (nas línguas de  origem), com inédita classificação geral, válida em qualquer país. Seu autor, professor titular da Escola de Comunicação e Artes da USP, não engana ninguém e manda, antes mesmo do índice, o seguinte recado: (...) é de se esperar que a leitura das análises, neste livro, não seja leve, descontraída, relaxada. Requer atenção, interesse, caneta para anotações (críticas?) e disposição para curtir as maravilhosas mensagens que os povos escrevem.

O livro contém o que você nem imagina: textos de programas de eventos, de testamentos, adesivos, broches, cartões de cumprimentos em festas sociais, cartões de eventos familiares, chaveiros, correio do amor ou correio elegante, ímãs de geladeira, marca-páginas, orações, “santinhos” de falecidos, correntes, epitáfios, fórmulas de evitar fiado, escritos em banheiros públicos, mensagens deixadas em hotéis e pensões, mensagens em papel-moeda, mensagens em veículos, mensagens na internet, mensagens em revistas e jornais, pedidos e agradecimentos  em periódicos, tatuagens...

Então, você vê o que interessa e se quiser, disporá ainda de um DVD com todo o material coletado...

O ex-presidente norte-americano George Bush contribui com uma boa dezenas de frases do mais puro besteirol:

* A grande maioria de nossas importações vêm de fora do país...

* Não é a poluição que está prejudicando o meio-ambiente. São as impurezas em nosso ar e água que fazem isso....

* Eu mantenho todas as declarações erradas que fiz...

* O futuro será melhor amanhã...

O nosso presidente Lula é bem lembrado por citações como:

* Eu gostaria de ter estudado latim, assim eu poderia me comunicar melhor com o povo da América Latina...

* Um número baixo de votantes é a indicação de que menas pessoas estão a votar...

* Nós estamos preparados para qualquer imprevisto que possa ocorrer ou não...

* Minha mãe nasceu analfabeta...

Pedidos de sentido místico-religioso aparecem às centenas. Escolho um, encontrado junto à imagem de Santo Antônio, na igreja de Santa Cruz dos Enforcados, da cidade de São Paulo:

* Meu querido Santo Antonio faça com que este Homem José Geraldo Faria tome uma decisão que ele me peça em casamento mesmo que seja para morarmos juntos que esta decisão seja bem rápida por favor que ele não consiga ficar longe de mim  | Vire |

Mais te peço Santo Antonio Conceda-me esta graça o mais Breve possível, ninguém quer viver sozinho e já estou cansada de ter amores que não dão em nada  Prepare bem o coração do Jose Geraldo Faria para mim e faça c/ que ele me convide p/ morar c/ ele

Muito obrigado   Maria da Penha Silva

Mensagens em veículos foram coletadas aos milhares. Num automóvel em Portugal a nossa comuníssima frase Bebê(s) a bordo está assim redigida: Cuidadinho aí! Vão miúdos aqui!

Em outro carro português, esta mensagem de duplo sentido: Espero não te conhecer por acidente.

Em festividades tradicionais, tipo quermesse, no Brasil, é prática comum a venda de pequenos cartões, onde os interessados escrevem sua mensagem curta e pedem a outra pessoa –  geralmente uma criança conhecida – que leve a peça à mocinha ou rapaz, propondo-lhe namoro. Exemplo dessa correspondência ainda hoje muito popular:

*RO|  Você sabe que pode contar comigo sempre. E que mesmo você não gostando de mim eu T.AMO MUITO. Desde que eu te conheci não parei de pensar em você. Isso é só um pouco do que eu posso falar do meu amor por você!!

Notas humorísticas e/ou irônicas estão muitas vezes presentes nos escritos populares. Veja o que está estampado numa camiseta posta à  venda em  Santiago de Compostela (Espanha):

*Vendo minha esposa, com minha casa, meu carro, muitas joias, roupa, incluindo esta camiseta. | excelente estado, dono original. Documentos em dia, entrega imediata. Remeto para o interior, sem despesas. Condições de venda:| NÃO ACEITO DEVOLUÇÃO!

Um chaveiro da Alameda Santos, em São Paulo, escreveu à entrada de seu estabelecimento:

* Fiado é coisa de louco e aqui não é hospício.

Uma plaqueta de azulejo num bar de Irún, Espanha, recomenda:

* Se queres ter sempre dinheiro, fica sempre solteiro.

Um copo vendido como suvenir em Londres garante que:

* Fiquei | Absolutamente.. | Bêbado | em Londres.

“Simpatia” publicada no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em 1991:

* Simpatia para deixar de beber | Pegar ½ copo de cachaça, colocar em lugar que ninguém veja, oferecer as Santas Almas benditas e dizer: Assim como este cheiro vai sumir, o vício de fulano também vai acabar.| No outro dia pega-se o copo com cachaça e joga em um lugar qualquer com o copo e tudo, depois põe esta simpatia 3 dias num jornal para ser publicada.

Festa carnavalesca como esta, nem no Rio de Janeiro:

* Grandioso Baile de Carnaval | promovido pela Missão Católica Portuguesa de Colônia  [cidade da Alemanha] | no Domingo de Carnaval no dia 14 de fevereiro de 1988,| com início às 18,30 horas, | na aula de |Gesamtschule de Köln Zollstock,! Baderthalgürter, n.º 3| Anima o Baile o famoso conjunto musical | OS PADS DE DORTMUND. | Haverá um prémio para o melhor| mascarado que estiver na Sala. | A deslocação para o local do Baile| faz-se tomando o Eléctrico nº 12, | ou o Autocarro nº 133 e descendo no fim da linha.

Com a trabalheira toda que teve o Prof. Américo Pellegrini Filho, considero justo colocá-lo na seletíssima galeria das pessoas mais que esforçadas na consecução de estranhos objetivos que perseguem com todo o empenho.

Estou lembrando-me  da árdua tarefa que se propôs o Prof. Antenor Nascentes, do Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro: organizar o primeiro dicionário etimológico brasileiro. Munido de  poucas fontes de consulta, abriu uma ficha para cada palavra que iria inserir no livro. Essa ficha era constantemente acrescida, modificada, alterada.

De tal maneira se aprofundou no absorvente trabalho, que, mesmo morando no Rio de Janeiro, então capital da República,  nem soube da Revolução de 1930, que deu início aos quinze anos do governo ditatorial de Getúlio Vargas. Por excesso de leitura, teve descolamento de retina.  Plenamente justificado, pois, o seu incomum desabafo na página de rosto de seu Dicionário, publicado em 1932: “Primeira e única edição”.  Não conheço outro livro que revele ao público tamanho cansaço de seu autor.

Os outros dois livros de peso são:

De Ecléa Bosi,  Memória e sociedade – lembranças de velhos, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2009.

Com a organização de Franco Moretti,  e textos de 178 colaboradores, A cultura do romance, volume I de O romance, tradução  de Denise Bottmann, São  Paulo, Cosac Naify, 2009.

Ficam  para outro(s) dia(s).

13/02/2010
emelauria@uol.com.br)

 

Voltar