Coisas de português

 
No morro do Cristo

 

O assíduo leitor apresenta-me sugestão radical: que eu escreva sempre sobre questões de linguagem. As pessoas precisam disso, poucas sabem o suficiente a respeito da própria língua, argumenta ele.

 

Não sei se devo tomar a coisa como elogio ou como restrição a outros assuntos aqui tratados. Semana após semana lutando por explicar o certo ou o errado – eis uma tarefa penosa e até um pouco antiquada. Não que desconhecer os recursos básicos do falar e do escrever tenha deixado de ser falha cultural. Ao contrário, cada vez mais se está exigindo que pessoas com pretensão ao exercício de funções de alta responsabilidade conheçam (e muito bem) os meandros de nossa língua, por vezes mais semelhantes a labirintos. A tarefa se torna antiquada  porque o foco da questãodiscernir o certo e o errado – sofreu alterações profundas desde que se passou da abordagem gramatical para a abordagem  linguística. Ou em outros termos: a língua portuguesa tratada pela gramática normativa é um vasto repertório de regras e exceções. A gramática, sendo normativa, dita preceitos, regras. A mesma língua , analisada pela linguística, torna-se vasto campo de observações práticas. A linguística não condena nem absolve, apenas descreve as possibilidades num dado momento histórico.

 

Exames vestibulares  e muitos concursos públicos são compostos de questões cujas alternativas consideradas como certas  estarão de acordo com o ensinamento da gramática mais tradicional, longe do uso diário do idioma, ainda quando praticado por pessoas de bom nível de conhecimento.

 

Vestibulares e concursos dificilmente aferem o que os disputantes sabem, mesmo porque a maneira definitiva de se avaliar o grau de aproveitamento linguístico de alguém  está no que cada um fala ou escreve, ou seja, no emprego real dos recursos da língua, que então assume o aspecto de linguagem individual. É na fala e na escrita de cada um que a língua se realiza, como dizem os teóricos.

 

Consideremos esta construção simples, comum em cartazes, anúncios de jornal, ou simplesmente exposta ao lado de um objeto:

 

VENDE-SE

No espírito do leitor nãodúvida alguma. Se o anúncio de VENDE-SE está no vidro traseiro de um veículo, é o veículo que está à venda. Não interessa explicitar quem o vende, mas o que se vende.

Ampliando-se a frase:

 

VENDE-SE ESTA CASA

Também a mensagem está claríssima: alguém, o dono (que não acha importante identificar-se), está propenso a dispor do seu imóvel mediante condições que posteriormente ficarão explicitadas.

Variando a construção:

 

VENDE-SE ROUPAS USADAS

O espírito da mensagem é o mesmo: alguém (que não razões para dar-se a conhecer)  tem peças em bom estado e deseja dispor delas. Pois bem, embora o sentido da frase esteja claro, a gramática normativa considera-a erradíssima, porque roupas usadas é o sujeito plural com que o verbo passivo vendem-se (= são vendidas) deve concordar. Logo, o certo será Vendem-se roupas usadas. Quem escreveu a frase não pensa do mesmo modo. Para ele, é alguém, indeterminado pelo pronome se que  tem roupas usadas para vender.

 

Estão por dezenas de exemplos da mesma construção, todos tidos como errados:

 

Cobre-se botões; limpa-se terrenos; aceita-se encomendas de salgadinhos; digita-se trabalhos escolares. É sempre alguém  que se propõe fazer alguma coisa, não vendo necessidade de explicitar o agente.

 

Monteiro Lobato brinca com o assunto no conto “O colocador de pronomes”, do livro Negrinha, em que Aldrovando Cantagalo, zeloso cultor do idioma e mártir da gramática, exige que o ferreiro da esquina expunja sua vistosa tabuleta de um erro insuportável: FERRA-SE CAVALOS.

 

Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?”  – indaga o ferrador.

 

“Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. O ferra-se tem que cair no plural, pois que é forma passiva e o sujeito é cavalos”—explica Aldrovando.

 

Vossa Senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural” – rebate o ferrador.

 

Este assunto consumiu  litros e litros de tinta, tendo sido estudado  com um toque inovador pelo grande filólogo Manuel Said Ali no seu livro clássico Dificuldades da língua portuguesa. Tenho a edição de 1908, o que mostra como a questão é velha.

 

Por último, é preciso distinguir dois tipos de construções com o pronome se, uma com verbos transitivos diretos (que admitem voz passiva) e outra com verbos de outras  predicações. No primeiro, se o sujeito for plural, o verbo irá para o plural; no segundo, o verbo fica sempre no singular, tendo sujeito indeterminado:

 

1.  Dão-se aulas particulares; encadernam-se livros; discutem-se novas propostas; alugam-se quartos; precisam-se operários.

 

2.  Assim se vai aos astros; vive-se bem aqui; conta-se com poucos amigos; quando se é feliz; precisa-se de operários.    

No primeiro grupo de frases, diz-se que o se é apassivador; no segundo, indeterminador do sujeito.

 

 

05/11/2016
emelauria@uol.com.br

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