Politicamente incorreto

 
Floresta doméstica.

 

Nem pense em sugerir convite a Leandro Narloch para que participe da próxima Semana Euclidiana. Você estaria entrando numa enrascada difícil de sair.

É que esse Leandro, curitibano de nascimento, antigo repórter da Veja, hoje morador em  São Paulo e ainda muito jovem, tornou-se merecedor de seus quinze ou poucos mais minutos de notoriedade por haver escrito o Guia politicamente incorreto da história do Brasil, “uma singular heresia perdida em meio ao mar das unanimidades”, na expressão  de Luiz Felipe Pondé, cronista da Folha de S. Paulo.

Publicado em 2009, teve segunda edição em 2011, revista e ampliada. O volume que li, gentileza do bom amigo Dr. Gastão Roberto Cunha, saiu na 13.ª reimpressão –  o que dá bem ideia da grande  vendagem da obra.

O sumário traz o elenco dos assuntos que serão tratados, ou melhor, detonados ou ridicularizados: índios, negros, escritores, samba, guerra do Paraguai, Aleijadinho, Acre, Santos Dumont, Império, comunistas. Nem todos eu comentarei.

Meu desaconselhamento inicial se baseia no capítulo dos escritores, em que a principal vítima da desconstrução de Leandro Narloch é o nosso Euclides da Cunha, colocado sob julgamento entre as páginas 129 e 137. Que se ache Os sertões um livro chato, o mais chato de todos os brasileiros, é questão de gosto ou capacidade de entendimento. Que  se engula a acusação de Euclides ter enviado de Canudos ao Estadão informações erradas e atrasadas sobre o conflito, ainda vá lá. Duro, mesmo, é ver ressuscitadas antigas versões sobre os crimes familiares cometidos por Euclides e  documentalmente desmentidos por Joel Bicalho Tostes, em Águas da amargura, escrito de parceria com Adelino Brandão. Nem é preciso dizer que Leandro se baseia no parcialíssimo Anna de Assis, de Judith Ribeiro de Assis e Jefferson de Andrade.

Imagino a veemência com que Joel desancaria as teses do Guia, se o tivesse lido. O livro saiu em 2009, mesmo ano do falecimento de Joel, após longa enfermidade.

Mas, deixando de lado o antieuclidianismo feroz  de Leandro Narloch, devo dizer que outros escritores também foram alvo de suas duras observações; para ele, Machado de Assis foi principalmente censor de insossas peças teatrais  no Império; José de Alencar, escravagista; Jorge Amado teve três grandes paixões: Adolf Hitler, Josef Stalin e Antônio Carlos Magalhães; Graciliano Ramos garantiu, em 1921, que o futebol era moda passageira, que jamais pegaria no Brasil; Gilberto Freire admirava a Ku Klux Klan; Gregório de Matos era um dedo-duro...

Nem só Euclides  levou tanta chicotada. Outra vítima preferencial do Guia foi Santos Dumont: “ele não inventou o avião – nem o relógio de pulso”; “o 14-Bis voava aos pulinhos”; “os franceses esqueceram Santos Dumont quando conheceram os irmãos Wright”; “o melhor avião de Santos Dumont é muito parecido com o dos irmãos Wrigth”; “deprimido e enraivecido, Santos Dumont se suicidou em 1932, num hotel do Guarujá, São Paulo, enforcado por duas gravatas vermelhas dos tempos de pioneiro dos céus de Paris”.

Justiça seja feita:  diferente do que ocorre na maioria dos livros atuais, nem os esquerdistas escapam da lupa revisionista. Luís Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, é reduzido a revolucionário trapalhão, que “se tomasse o poder no Brasil, provavelmente seria mais um dos tiranos socialistas que ainda hoje estarrecem o mundo. Sua atuação revolucionária deixou à mostra traços típicos de ditadores socialistas, como a obsessão pela traição e a intolerância com opiniões diferentes.”

Também a geralmente triste figura que o Brasil teria feito contra o Paraguai na guerra que durou de 1864 a 1870, mereceu positivos retoques do impiedoso crítico: “Solano López  estava obcecado em entrar em guerra com o Brasil, um vizinho 22 vezes mais populoso”;  “Solano López não foi herói. Ou melhor: foi um herói falsificado. “Para virar presidente, tomou o cargo do irmão”. “Seis anos depois, com a guerra perdida e obcecado por supostas conspirações contra seu governo,  Solano mandou matar o próprio irmão”. “Não houve genocídio [brasileiro] algum. Não se pode calcular a porcentagem de paraguaios mortos, porque ninguém sabe quantos paraguaios existiam antes da guerra. O censo paraguaio não era confiável.” “Mesmo se o fantástico número de 70% das mortes fosse real, não daria para culpar o Brasil por essa tragédia”. “Calcula-se que de um terço a dois terços das mortes, entre aliados e paraguaios, se deu por doenças, como cólera, varíola e diarreia, ou simplesmente por fome e frio.” “O cenário mais comum da guerra eram acampamentos sujos, pobres e apinhados de prostitutas, familiares dos soldados e até vendedores de cachaça. Não havia água potável e a comida consistia quase sempre em carne com farinha mofada e cheia de moscas.”

Ora, alguém já dirá com certa impaciência: se o livro é tão cáustico e por vezes tão injusto, por que perder tempo em lê-lo e comentar seu conteúdo? Porque, respondo eu, não é permanentemente que a inteligência se põe a serviço de más causas: nem tudo no Guia é desprezível, especialmente as observações à margem, que Leandro faz com perspicácia e originalidade. Transcrevo algumas:

·   O Sete de Setembro foi um símbolo nacional que se construiu aos poucos. Décadas depois de  dom Pedro ter dado o grito do Ipiranga, pouca gente comemorava a data ou a considerava importante para a história do Brasil. Só a partir de 1862, com a inauguração da estátua equestre de Pedro I no Rio e principalmente depois da República, o Sete de Setembro ganhou a importância que tem hoje.

·    Católicos usavam nas frituras a banha de porco, animal proibido na refeição dos judeus. O azeite, portanto, provocava a suspeita de judaísmo.

·   Naquela época, quem queria viajar do Rio de Janeiro ao Mato Grosso tinha de contornar um bom pedaço da América do Sul. Os viajantes pegavam um barco em Buenos Aires, de lá entravam no rio Paraná, depois no rio Paraguai, passavam por Assunção, Corumbá e só  então chegavam perto de Cuiabá.

·    Em 1806, o Times [de Londres] chegou a comemorar a conquista britânica da Argentina. “Buenos Aires passa a fazer parte do Império Britânico”, estampou o jornal.

·    Em 1839, o inventor americano Charles Goodyear criou a vulcanização da borracha, tornando possível que esse material fosse usado para a fabricação de pneus de bicicletas, carroças e, décadas depois, carros. Os seringais da Amazônia se tornaram assim fontes de fortunas que transformaram as cidades.

·    A festa da proclamação da República Independente do Acre, de acordo com o historiador Leandro Tocantins, teve três caixas de cerveja Guiness, uma de champanhe Veuve Clicquot, uma caixa de cerveja americana, 700 charutos, além de feijão, arroz, carne seca, bananas e goiabas para 107 pessoas.

·    Assim surgiu a expressão “ir para o Acre”, como sinônimo de “morrer”, presente em alguns dicionários, como o Houaiss.

·    Uma carta de alforria custava cerca de 150 mil réis – o equivalente  a uma casa simples na cidade.

·    Outra testemunha dos voos dos Wright foi o tenente  Etholen Selfridge, o primeiro homem a morrer num acidente aéreo. Ele voava com Orville Wright quando o avião se desequilibrou e caiu, matando o tenente. O inventor Orville passou sete semanas no hospital. O episódio aconteceu em 1908 – quando os aparelhos de Santos Dumont ainda voavam muito baixo para matar alguém.

·   Desse ponto de vista, a monarquia teve para o século 19 o mesmo papel da ditadura militar no século 2º: evitar que baixarias ideológicas instaurassem o caos entre os cidadãos.

·   Diferentemente dos heróis bravos e fortes do resto da  América Latina, muitos dos políticos imperiais eram velhos curvados e doentes. Dois deles, Bernardo Pereira de Vasconcelos e o padre Feijó, tinham problemas de locomoção. Discutiam no Parlamento esticando-se numa cadeira de rodas.

·    A cerimônia em que dom Pedro I jurou a Constituição aconteceu em 25 de março de 1824. A data logo virou nome de rua, como a do famoso ponto do comércio ambulante do centro da cidade de São Paulo.

 Variado e informativo como um bom almanaque dos velhos tempos.

 

04/05/2013
emelauria@uol.com.br

 

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