Sacrifícios pelos filhos

 

 

Papiro

 

 

De repente, aquele soco na boca do estômago por causa do inesperado:

- Como? Nossa filha? Nem posso acreditar!

Com estas palavras e outras assemelhadas, pai e mãe foram colocando para fora a surpresa, a revolta e aquela sensação de não merecerem nada daquilo.

- Nossa filha... Fazemos tudo por ela, os maiores sacrifícios, damos a ela do bom e do melhor, até o que não podemos,  e...

E a mocinha de dezesseis anos tinha fugido de casa, sem deixar notícia nem recado, como diziam os antigos em situações assim.

Todos foram movimentados, primeiro os parentes e amigos, depois os vizinhos, a polícia. E toca a telefonar, a andar daqui pra ali, até a madura decisão de espalhar fotos pela cidade toda.

Tudo em vão e a abertura de um novo capítulo de preocupações. Aquele sumiço não era o primeiro no meio deles, a mesma angústia estava sendo vivida por muitas outras famílias.

Um dia, o pai estava de plantão, à espera dum milagre, naquele barzinho frequentado por adolescentes, quando viu, acompanhada de um sujeito muito estranho, uma das outras mocinhas dadas como desaparecidas. Quis aproximar-se amistosamente dela, mas sua manobra foi logo percebida. A mocinha saiu depressa pela rua movimentada, e ele atrás, apesar do fôlego curto. Ao virar uma esquina, uma perna com função de alavanca o derrubou. Era do tal sujeito muito estranho. Perto dele, como que protegida, a mocinha fujona.

- Escute aqui, seu coroa intrometido. A menina não quer saber de você nem da família dela. Está comigo e gosta muito, entendeu bem?  Se você vier atrás de nós, eu te furo.

E os dois, abraçadinhos, lá se foram com jeito de muito felizes, enquanto o coroa ficou ali, sem palavra nem ação.

O incidente chegou ao conhecimento das muitas famílias envolvidas, que resolveram tratar o assunto do desaparecimento dos filhos por outro ângulo – o da solidariedade, da ajuda mútua, da conjugação de esforços. Criou-se informalmente uma associação de pais de adolescentes desaparecidos. Pensou-se em reuniões semanais, sempre em diferentes casas. A ideia não prosperou nesse formato, porque todos sentiram necessidade de estarem mais juntos, sem grandes intervalos, num local fixo. A residência do casal que chamarei A.& D., aquele que se lamentava no início deste relato, foi escolhida como sede das reuniões, por ter um bom espaço livre e coberto.  Todos os dias havia gente ali com notícias, falsas pistas, conjecturas mil.

Os primeiros encontros foram marcados pelo formalismo, pela falta de espontaneidade, mas aos poucos as pessoas acabaram se entrosando e discutindo em bases realistas a difícil situação que tão dolorosamente as aproximara.

Nenhum dos filhos foi achado, mas os pais sentiram o notável efeito daquela busca incessante, compartilhada e capaz de criar um belo clima entre homens e mulheres que de outro modo nem se conheceriam.

Trataram de muita coisa sobre desaparecimento, conheceram a opinião de educadores, juristas, psicólogos, assistentes sociais, até que...

Até que alguém, ligado a um grupo de pesquisa universitária, veio com a revolucionária sugestão:

- Pelo que lemos, discutimos e estudamos, filhos não saem de casa sem motivo. Sentem-se injustiçados,  revoltados, inseguros, desamparados, buscam refúgio no sexo, em companhias amáveis e  em qualquer forma de droga, principalmente bebidas e tóxicos. E o que é que nós sabemos do mecanismo disso tudo? Daí minha proposta – trazermos aqui especialistas que nos expliquem cientificamente os procedimentos que devemos adotar não só na fase de busca, mas também no difícil retorno das nossas crianças ao lar. Se concordarem com isso, já tenho o nome de cientista renomado no estudo de mudanças comportamentais decorrentes do consumo da cannabis sativa, a maconha.

Houve alguma indecisão, muita inquirição, mas ficou combinado: dali a uns poucos dias, o maconhólogo  estaria entre eles, para os munir de instrumentos capazes  de fazê-los entender melhor os terríveis dramas vividos por meninos e meninas que se achavam donos dos próprios narizes e na verdade estavam perdidos no mundo.

A figura do cientista fazia pensar antes num bicho-grilo dos anos sessenta do que num homem de saber profundo. Ele chegou com sua cabeleira no melhor estilo black power, que mais lembrava uma vistosa peruca, falou pouco e já foi distribuindo uns cigarrinhos prontos de maconha, que garantiu serem da melhor qualidade. Ensinou como pegar, como acender, como aspirar e expirar:

- Deem uma tragada profunda, retenham a fumaça nos pulmões, contem até dez e depois a soltem pelo nariz.

Houve tosse, pigarro, ânsias, repulsa e até sensações de pleno prazer, entre os pais que se submeteram à experiência.

-Não, não traguem de novo. Antes passem a bagana ao companheiro sentado a seu lado. Isso é questão de etiqueta, porque mostra a unidade do grupo.

Não se pode ter certeza de quantos, mas houve quem, submetido à insólita prova, desse sinais de ter, desde logo,  gostado muito do evento.

O grupo, a partir daí, se mostrou mais unido, mais aberto ao debate e a sugestões incomuns.

A  mais estranha delas foi o convite que o casal, aqui identificado como J.& R., fez aos anfitriões, quando os demais já iam se retirando, ao fim da inovadora e proveitosa reunião:

- Que tal nós quatro encerrarmos esta bela noite com uma partidinha de pôquer australiano?

- Pôquer australiano?

- Pôquer australiano. É a coqueluche nos grandes centros.

E forneceu as regras, simples e realistas:

- Coloca-se um baralho no centro da mesa e cada um tira uma carta. Quem dos quatro sair com a mais baixa, desfaz-se de uma peça de roupa.

- Como assim, peça de roupa?

- É isso que você ouviu. Peça de roupa. Não vale tirar relógio, anel, pulseira. Tem de ser de pano, tem de cobrir e/ou enfeitar o corpo. Gravatas, meias, xales valem. Entendido?

Como, àquela altura, negar-se à experiência? Estavam lá para isso mesmo, para entender as razões dos filhos, para os ajudar a enfrentar situações estressantes a que as gerações mais velhas jamais tinham sido submetidas.

Houve muita piadinha, muita risada de puro nervosismo, antes da criação de um clima intimista. Os quatro se viram aos poucos despojados de suas vestimentas.

Foi aí que a Sr.ª D., num visão surrealista, vislumbrou sua filha desaparecida entrar pela sala e fazer menção de se aproximar da mesa de jogo. A Sr.ª D. quis dizer alguma coisa ao Sr. A., mas nenhum dos dois tinha condições de levantar-se, por diversos motivos, o principal deles ligado a uma retomada do senso de pudor. A filha, chocada com o que via, parou a meio caminho. O casal A.& D. acenou para ela e acompanhou com os olhos meio baços sua subida pela escada que levava aos dormitórios da casa.

Não tinham sido em vão os sacrifícios.

 

Este é um texto ficcional. Qualquer semelhança com fatos reais ou com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
 

 

01/08/2015
emelauria@uol.com.br

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