Uma italiana apruma a cruz da torre Observo-a, imortalizada numa tela do artista Germinal Artese. Mãos em súplica, humilde, seguram as contas de um rosário. Parece orar. Seu rosto, ainda não marcado pelo tempo, tem olhos expressivos, olhando o infinito. Cabelos ondulados, castanhos, o emolduram. É um belo retrato a óleo da fase áurea do artista, conservado no seu ateliê. Longe no tempo, lembro-me da estranha senhora Clarice Calvitti, já velha, com cabelos cinzas encaracolados na testa, morando só, na casa construída para dentro da linha do muro da calçada, na Rua João Pessoa, logo depois da casa e oficina do alemão Rolf Hornschuch, onde hoje se instala o Correio. Aquele retrato no ateliê do mestre sempre me fascinou. A retratada era mãe de um tio, por afinidade, do artista. O Prof. Germinal contava-me fatos esparsos da sua vida: fatos interessantes perdidos no tempo. A velha senhora viveu sozinha depois da morte trágica do marido, o construtor italiano Felício Maria Calvitti, que aqui construiu a bela igreja gótica projetada pelo engenheiro Ramos de Azevedo, o muro e a igrejinha do Cemitério, como outro belo templo na vizinha Mococa. Como fazendeiro, proprietário da fazenda São João, no município de Mococa, encontrou a morte, em junho de 1910, assassinado pelo colono Antônio Vasques. Um gesto de arrojo e coragem notabilizou a senhora Calvitti. Pena que não havia em São José, em 1897-98, um jornal regular que registrasse o inédito feito, só transmitido oralmente através de gerações e registrado em três linhas no opúsculo histórico da Professora Amélia F. Trevisan, no seu trabalho "Igreja Matriz". Não sei a razão, mas houve um pavor entre os pedreiros e serventes da Igreja em construção para aprumar a grande cruz de ferro no alto da única e alta torre. Ninguém se apresentou para a difícil e perigosa missão. Clarice soube do impasse e resolveu encarar a tarefa. Rompeu os padrões rígidos de uma sociedade conservadora e exigente, aparecendo na obra sem o tradicional longo vestido, mas portando camisa e calça grossas de homem trabalhador e sapatos baixos. Ela se apresentou ao marido, resoluta como era, exigindo que ele determinasse os passos da tarefa. Ele tentou dissuadi-la, expondo-lhe as dificuldades e o perigo do empreendimento, o desconforto de lidar com uma cruz enorme e pesada, principalmente em se tratando de uma amadora... Sem medo e confiante na sua habilidade, ela subiu escadas, deixando embaixo atléticos operários em silêncio e boquiabertos... Parou na base da torre piramidal. Acenou para a atônita assistência. Continuou grimpando uma das faces inclinadas do extremo superior da torre e conseguiu, depois de ensaios, erros e acertos, aprumar e fixar a cruz de ferro no vértice determinado, sob os aplausos incessantes da enorme assistência. A cruz estava aprumada e firme. Nós, crianças, tínhamos um certo receio da italiana senhora Calvitti, velha e estranha, talvez pelas suas histórias de coragem, que a colocavam numa redoma de magia, feitiçaria, milagre, que o tempo nos fez esquecer... Revendo, hoje, imortalizada na tela e nas tintas do Professor Germinal, tão meiga e feminina, eu imagino quantos maldosos comentários ela deve ter provocado na pequena São José, ao executar o trabalho de um homem e vestir-se como um deles, quebrando os rigores de padrões vigentes, numa época em que a saia não era levantada nem para se coçar o tornozelo.
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