A carta do imigrante Giuseppe Manzoni

Há anos, quando em várias crônicas comentei o movimento dos imigrantes italianos em São José do Rio Pardo, recebi um precioso presente de um prezado e desconhecido leitor piracicabano de Gazeta, Sr. Linneu Siqueira, pai da Sra. Eliana Siqueira Dias, aqui residente. É um livro italiano Merica! Merica!, de Emílio Franzina, professor de História na Universidade de Pádua, editado em 1979, por uma editora de Milão. O autor conseguiu pesquisar, visualizar e mostrar a imigração italiana através de cartas de camponeses vênetos na América Latina. São ao todo 41 cartas selecionadas, com longos comentários, tendo a pesquisa se estendido a atas parlamentares, ministérios, boletins consulares, centros de estudos da emigração, etc.

Das 41 cartas, 17 são de São Paulo. Da nossa região, 3 de São Carlos,.3 de Campinas, 2 de Santa Cruz das Palmeiras, 1 de Ribeirão Preto e 1 de São José do Rio Pardo, sendo esta a de maior comentário e, segundo o autor, "uno dei documenti piu suggestivi di tutta la nostra reccolta".

O imigrante Giuseppe Manzoni, de Feletto, província de Treviso, definido como um "vecchio d’antico stampo", enviou carta, de uma fazenda de São José do Rio Pardo, aos 11 de março de 1889, ao professor comunal de sua cidade. Aquele fora um ano agitado no Brasil pelas manifestações antimonárquicas, visando a República.

O autor, ao comentar a carta, diz que ela foi expedida de São José do Rio Pardo, um grande centro agrícola, com 24.000 habitantes, cuja metade era formada por italianos.

No início da carta, o "ancião imigrante" relata, impressionado, acontecimentos políticos em São Paulo, visando à proclamação da República. Descreve, também, a revolta irrompida na Hospedaria dos Imigrantes, aproveitando-se da insurreição brasileira, provocada pelo inumano tratamento oferecido aos enganados italianos que, depois de aproximadamente 26 dias de dantesca viagem de barco, e 4 horas de trem de Santos a São Paulo, eram jogados em grandes quartos da hospedaria, que comportava até 700 pessoas, onde centenas se desesperavam com o desconforto, com os maus tratos, com a fome, com a mortalidade infantil...

Giuseppe, o missivista, com um certo desprezo, como que assumindo velho preconceito racial, refere-se a seus compatriotas do sul - os napolitanos – residentes em São Paulo, com palavras ríspidas: "bruta gente, bestemiatori, senza religione" ... Talvez fosse velha rixa entre camponeses do norte e do sul, ou discórdia religiosa e, não, ódio racial, pois os colonos vênetos conviveram fraternalmente com os negros escravos e ex-escravos do Brasil.

De São José, ele comenta a beleza das colinas lisas cobertas de café, os bosques, as estradas não-conservadas, a estrada de ferro, o café, a fartura, a carestia das coisas, as casas da colônia, a carne de porco distribuída aos colonos, a água pura, as distâncias entre a fazenda e a igreja e de S. José a São Paulo, as festas com bailes na casa do patrão, Giovanni De Toffoli, o arrependimento dos imigrantes que deixaram suas terras, morrendo de paixão; a pouca religiosidade, o padre da paróquia...

Para entender a carta do vêneto Manzoni e o longo comentário do autor, aborreci muito as irmãs Madre Angélica e Irmã das Dores, do Instituto Santa Inês, e a professora Ada Parisi, todas brasileiras, que residiram na Itália, a quem agradeço as atenções.

Não sei se tive a fineza de agradecer ao senhor Linneu o precioso presente que, só agora, está sendo minuciosamente analisado. Se não o fiz, faço-o agora: obrigado, amigo!

Eis a carta traduzida:

São José do Rio Pardo, 11 de março de 1889.

Caro professor

Digo-lhe que partimos dia 27 de janeiro da Casa de Imigração, onde morreu meu avô Sisto, um filho de Antonio Barel e uma menina de Antônio Celotto. Digo-lhe, também, que no dia 26 de janeiro, naquela casa, aconteceu uma revolução: jogaram fora, no quintal, o que estava na cozinha: sopa, carne, pão, tudo pela janela. Fugiram todos os empregados, cozinheiros, patrões. Pisaram em tudo, até nos pratos. Esta revolta atemorizou meio mundo.

Telegrafaram. Vieram guardas, avaliadores, militares da cavalaria, que acalmavam os imigrantes, dando-lhes razão, pedindo-lhes paciência, dizendo-lhes que no dia seguinte seria trocado o cozinheiro e que a comida seria melhor.

Ninguém ficou ferido. Tudo melhorou e comia-se bem.

No dia 26, estourou uma revolução em São Paulo. Os civis brasileiros esperavam reforço da Casa de Imigração, mas quem tinha família não se manifestou para não assustar mulher e filhos. Uma jovem de 17 anos estava fora da casa e viu, na rua, cortarem a cabeça de um cavalo, de um militar. Assustou-se, morrendo cinco horas depois no hospital. Os militares prenderam poucos, levando-os à prisão; então voltou a calma.

Os italianos napolitanos residentes em São Paulo, com negócios, restaurantes, queriam a República, queriam mandar em tudo: gente bruta, blasfema, sem religião.

Os brasileiros são bons: a maior parte é negra; todos vivem muito bem: gente alegre, sem preocupações. Sempre, à noite, fazem festa, com baile, na casa do nosso patrão. Ele também gosta de dançar, de cantar, de estar alegre.

Digo-lhe que aqui, na fazenda, seis famílias estão juntas, distribuídas em duas casas, mas já estão fazendo mais quatro, quase terminadas. O patrão, Giovanni De Toffole (não era o dono, deveria ser o administrador), nos dá tudo o que precisamos. Com ele, formamos uma só família. Ele nos paga dois "francos" por dia, com despesas, chuva, sol, para acondicionar o milho.

Aqui no Brasil é preciso colocar o milho com palha no paiol, porque se fosse sem palha não duraria mais que cinco meses. Com palha, ele se mantém durante dois ou três anos.

Aqui tudo é caro; custa para viver. Neste ano a colheita de tudo é abundante. Aqui não é como na Itália: não se sofre a seca; chove toda semana o necessário. A terra é muito fértil, não precisando cultivo. Os bosques são densos, de um tamanho extraordinário.

Os negros que queimam os bosques não arrancam nenhuma árvore, deixando-as, enormes, em pé. Plantam as sementes sem aração e, em cada cova, colocam cinco grãos, e todos brotam, dando uma ou duas espigas em cada pé.

Aqui, agora, estamos carpindo café. Ganha-se pouco porque o mato, no meio do cafezal, tem a altura de um homem, mas se ganha 25 mil florins por mil plantas.

Se o senhor pudesse ver a maravilha que é uma colina de café! Os grãos iguais que caem do pé parecem avelãs.

Todas as plantações são alinhadas, tendo estradas entre elas, que podem passar carros. Tem laranja, limão e outras frutas. Tem fumo para fumar.

A planta do café tem folhas como as de louro. (...).

Maravilhoso é ver que nos bosques não há animais selvagens, porque não há cavernas; todas as colinas são lisas, belíssimas.

Nós temos todo o conforto: lenha infinita, abundância de água, uma roda que toca um pequeno moinho que passa no terreiro: água boa, patrões bons.

As casas são de madeira, mas muito bem feitas, com quatro quartos, cozinha e forno. Elas são baixas, cobertas de telhas de barro vermelho. Aqui na América todo barro é vermelho.

Todo sábado se mata um porco com mais de cem quilos. A carne é distribuída aos colonos, como, também, a gordura para o tempero. A carne é barata: custa 80 centésimos o quilo, e pernas, cabeça, fígado nada custam.

Digo-lhe que na América as estradas são péssimas. Não se pode imaginar! Tanto assim que para puxar um carro de duas rodas, com peso de mil libras, são necessários quatorze enormes bois. Se houvesse boa vontade custaria pouco consertá-las. As estradas de ferro são estreitas e entram no meio dos bosques. Os trens vão como o vento: correm muito mais que os da Itália. Eu saí de São Paulo às seis da manhã e cheguei às quatro da tarde em São José do Rio Pardo, distância que calculo seja de Conegliano a Gênova.

Muitos imigrantes se arrependeram ao encontrarem-se tão longe da terra natal. Muitos que tinham três filhos ficaram sem nenhum. As mães desesperadas amaldiçoaram a "Merica" e procuraram retornar à Itália, por meio da emigração. Outros tantos não tiveram sorte com as famílias, vendo-se no meio do desolamento. Muitos morreram de paixão. É preciso pensar seriamente antes de empreender a longa viagem, porque facilmente se arruína. Não aconselho ninguém a partir quando não se é chamado por parentes.

Aqui a religiosidade é pouca. Nós estamos longe da igreja da cidade, como de Feletto a Conegliano. Dois ou três de nós vamos às festas, quando o tempo ajuda. Se chove, ninguém vai.

Em São José há um só padre e uma só missa. Depois da missa, a igreja se fecha e ninguém pode mais entrar. Quando o padre vai a algum lugar vizinho, ganhando 50 florins, ele deixa a cidade sem missa, mesmo em dia de festa. Quando morre alguém, precisa-se levá-lo à igreja, pagando-se pela bênção 10 florins. Para limpar um relógio, Luís pagou 10 liras italianas; para fazer um terno, 30; e para arrancar três dentes, 30. Tudo muito caro! (...).

Seu amigo

Manzoni Giuseppe.

 

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