A
PROPÓSITO DE ‘ONDAS’
Em
tempos
áridos de
emoções cívico-estético-literárias
como os
que vivemos,
já
não
anda
fácil
entender
atitudes reverentes
como a de Tristão de Athayde (Alceu
Amoroso
Lima)
frente à
cabana de Euclides da
Cunha,
aqui
em
São José do
Rio
Pardo. No
entanto, faz
pouco
mais de vinte
anos
que Tristão chegou, ficou
em recolhido
silêncio, fez
até
um
vago
gesto de
respeito
religioso
ante o
que a
pobre casinha, ao
abrigo das
intempéries,
lhe suscitava de rememorações
ligadas a
um
homem
que construíra uma
vida e uma
obra de
lances
tão sofridos.
Pensei
que,
testemunha daquela e de muitas outras
manifestações emotivas
frente à
choupana, a
mim
mesmo
não
me coubesse
nunca
viver
momento desse
tipo de
comoção
pura,
absolutamente
isenta de
qualquer sentido
que
não no
plano
mais
alto do
espírito.
Pois,
recentemente,
eu vivi o
meu
instante de
nó na
garganta,
por
causa desse
nosso conterrâneo
honorário e
quase
familiar,
que é Euclides da
Cunha.
Num
domingo,
em
casa do Prof. Hersílio Ângelo, chegou-me às
mãos
parte do
acervo do
Grêmio Euclides da
Cunha,
material
que
meu
prezado
mestre e
amigo custodiava
com
desvelo.
Enquanto se providencia
abrigo
condigno e
mais
definitivo
para
documentos
valiosos e
insubstituíveis, terei
comigo (tão
preocupado
quanto esteve o
seu
anterior
guardião)
cartas, cartas-bilhetes,
livros
diversos, uma 1.ª
edição de Os
Sertões
com
observações do
autor, à
margem. E duas
cadernetas de Euclides – uma delas contendo os
autógrafos de
Ondas.
Foi no
manuseio e
detido
exame daquele
objeto de
dez
por quinze
centímetros, contendo 155
páginas numeradas a
mão e a
lápis,
que tive o
meu
inesperado
momento de
comoção euclidiana.
Desde a
capa,
marrom
com
aspecto de
couro,
tudo faz
presente o
homem Euclides,
anterior e
superior à
glória,
como se
nem o
tempo
nem a
morte houvessem
posto
fim a
um
espírito
que,
em 1883 e 1884, povoou aquelas
páginas
com
demonstrações
matemáticas,
poemas e
sonetos,
exercícios de
autocrítica,
desenhos
geométricos e
figuras humanas.
Mal se
lê na
capa, no
alto, Euclydes
Cunha; no
meio,
Ondas, e ao
pé, 1883 –
Novembro e
Dezembro, dando ao
conjunto
um
nítido
aspecto de
livro,
um
livro
que o Euclides
adolescente gostaria
então de
ver publicado,
com as
primícias do
seu
talento.
Na
primeira
página, recoberta
por cerradas
demonstrações
matemáticas
feitas a
tinta, está lançado a
lápis 900$, possivelmente o
preço da
própria
caderneta
enquanto
coisa
comercial – novecentos
réis. A
última
indicação, uma
espécie de
conclusão, é “Formula
geral das
equações
ás differenças” e “A
equação
ás differenças
só contem
termos do
grau
par”,coisas
que,
por
absoluta
incapacidade,
nem
me atrevo a
comentar. O
anverso da
página apresenta-se
em
branco.
Na
seguinte, numerada
como 3, lê-se
Ondas, / primeiras
poesias - / de / Euclydes
Cunha - / -
Rio de
Janeiro -/- 1883 -.
Como se
tudo estivesse
pronto
para a
impressão,
exceto a
inusitada
indicação 14 annos, à
qual voltarei
mais
tarde.
O
que se segue da
página 5 à 142 é o
que,
com atualização ortográfica, se pode
ler a
partir da
página 631, no 1.º
volume da
Obra
Completa da
Edição Aguilar, de 1966.
Mas
não é propriamente do
valor de
Ondas
que pretendo
falar:
como
bem ressaltou Manuel
Bandeira na
apresentação da
obra na
Edição Aguilar, “o
próprio Euclides teria
cedo reconhecido
que o
verso
não seria o
seu
apto
instrumento de
expressão
literária.
Tudo o
que
em
sua
alma havia de
belo,
forte e
ardente, de
poder transfigurador poético, está é na
sua
prosa
máscula,
um
tanto
bárbara, às
vezes,
mas
sempre
magnífica – na
prosa de Os
Sertões,
sobretudo.”
Chamou-me a
atenção,
isto
sim, a
injustiça
que Euclides cometeu
consigo
mesmo,
quando
anos
mais
tarde, relendo os
originais de
Ondas, lançou
breves e
contundentes
críticas ao
seu
escrito
inaugural. A
primeira
manifestação da
injustiça está
evidente na
dura
advertência
que
lança ao
longo da
primeira
contracapa, destinada ao
eventual
leitor: “Eu
tinha 15 annos! Contem (= contém),
pois, a tua
ironia,
quem
quer
que sejas - - -“
Na
página 3, retoma a
crítica, continuando
depois dos 14 annos
originais: “de edade” / Obsm. (=
observação)
fundamental
para
explicar a
série de
absurdos
que há nestas
páginas. / 1906 – Euclydes.
Evidente
que
nenhum
autor,
ainda
que
sem o
prestígio de Euclides, deixaria de
notar,
passados 22
anos,
que a
sua focalização da
vida, a
sua
marca
estilística ,
sua
experiência
acumulada
lhe dariam
condições de
escrever
melhor
ou ao
menos
diferente do
que na
longínqua
adolescência.
Exatamente
por
ter
escrito
Ondas
em
tenra
idade (aos dezessete-anos
anos, a
não
ser
que 1883 seja tomado
apenas
como a
data da
compilação de
poemas produzidos
em
diversos
anos
anteriores), é
que o Euclides
adulto haveria de,
quando
menos,
nada
observar de
modo
assim
acre.
Para os
verdes
anos
em
que foram
escritos, os
versos de
Ondas
são
admiráveis,
tanto
pela
forma
cuidada
quanto
pelos
temas
que focalizam,
tudo exigindo
incomum
cultura e
acuidade de
seu inexperto
autor.
Esta precocidade de Euclides pode e deve
ser
posta
em
confronto
com as possibilidades de
autores
contemporâneos. Se no
Romantismo se verificaram os
exageros de
um Álvares de Azevedo,
poeta
feito,
morrer aos 21
anos, e Castro Alves aos 24,
em
datas
mais
recentes
não
são raras
estréias tardias,
como as de Graciliano
Ramos e Guimarães
Rosa.
E
nunca é
demais
lembrar
que Euclides da
Cunha
nem atingiu
aquilo
que
hoje se chamaria a
plena
maturidade,
por
volta dos 50
anos. De
fato, aos 50
que
não alcançou,
pois
morto aos 46, estaria à
mesma
distância dos 30 (início
da
maturidade) e dos 70,
quando
começa
aquilo
que os ingleses chamam de old age,
vale
dizer, a velhice propriamente
dita.
Feliz,
portanto, a
circunstância de se
ter preservado a
caderneta de
Ondas,
onde,
entre muitas
coisas, fica demonstrado
que
um
autor
neófito, aos 18
anos
ou
menos, pode
ter
já
alguns
textos de
valor
definitivo,
graças à
precisão
estilística representada
pela boa
adequação da
linguagem aos
temas propostos.
___________________________________________________________
Texto de 1980, publicado
em
vários
jornais,
como
Gazeta do
Rio
Pardo e
“Suplemento
Literário” do
Minas
Gerais. Refundido
pelo
autor
em 2004.
Todo o
material do
Grêmio Euclides da
Cunha está
hoje
sob a
guarda da
Casa de
Cultura Euclides da
Cunha, de
São José do
Rio
Pardo. A
caderneta de
Ondas,
por
iniciativa do Dr. Oswaldo Galotti, foi
restaurada
por
especialistas da USP.
14/08/2004
(emelauria@uol.com.br)
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