FUMANTE LICENCIADO

 

Não sabe ao certo quando se decidiu a deixar de fumar. O motivo, não bem de saúde, passou a ser fortíssimo, de modo que tudo se resumiu a uma questão de escolher data. Ao resolver isso, então seria pra valer. E acabou chegando o dia em que disse de si para consigo:

 

         -- Amanhã não fumo mais.

 

         Baforou tanto quanto pôde. Quarenta ou mais cigarros sorvidos em espírito de adeus. Afinal, precisava ser assim.

 

         Fumava desde menino: a princípio uns arrebenta-peitos Liberty, obtidos por vias ilícitas. Depois, na escola, por imitação dos mais velhos, por machismo, por não ter que fazer com as mãos, peregrinou do Beverly, vendido “picado”, ao Continental, aos Turcos, ao Hollywood.  Nos momentos de depressão financeira (não tão raros), investiu pelo Fulgor, pelo Macedônia, pelo inevitável Semedão; recorreu até ao “bira”

 

         Com o vício perfeitamente consolidado se agüentou por muitos anos. Depois se entremearam as tentativas meio pro forma de livrar-se do hábito ( não era vício; não podia fazer tanto mal): a piteira científica, a novidade do filtro (“era chupar bala sem tirar o papel”), as fumadas com hora certa, a fixação de rígidas quotas diárias – todos esses inócuos expedientes que funcionam quando a vida decorre na rotina. À menor modificação, vão por água abaixo.

 

         Suportou cigarrilhas e cigarros de palha. Não só o Pachola, mas o feito a capricho, indispensável nas pescarias. Passou a distinguir as virtudes do fuminho tietê, do rio das pedras, do legítimo goiano. Levava com habilidade a palha aos lábios e  a enrolava depois com a mestria de matuto velho. Até charuto conseguiu com ele seus momentos de consumo, mas não pegou, a não ser em ocasiões muito especiais.

 

         Cigarro estrangeiro? Experimentou o péssimo  Nazionale italiano, o Philip Morris, o Luchy Strike, o Marlboro. A culminância deu-se num perfumado cigarro inglês, feito de fumo turco e vendido em caixinhas de cem unidades: o Wild Woodbine, --  madressilva silvestre, ignora-se por quê.

 

         Cachimbo? Teve até um importado, que abastecia de tempo em tempos com um louro fumo Half and Half, apetitoso de aspecto e perfume, lembrando mais uma guloseima devorável em minutos.

 

         -- Amanhã não fumo mais.

 

         Alta noite, acendeu mais um Minister, fumou-o devagar e em silêncio, até perceber que o filtro se queimava. Colocou fora da carteira os remanescentes, contou-os, certificando-se de que havia oito. Recolocou-os no lugar e escreveu na vistosa embalagem azul e branca: “18/7/68”.

 

         Sabia por experiências anteriores o que em seguida viria: nervos tensos, explosões, um falso apetite descontrolado, a rápida engorda, os paliativos, a guerra.

 

         Os primeiros dias foram de cachorro, mais até que o esperado, porque coincidiram com as férias. A atenção não se fixava, as mãos automaticamente apalpavam o bolso esquerdo da camisa, a boca enchia-se de água, em especial depois de um cafezinho. Tudo isso, mais a insônia, os sonhos desassossegados, os “não adianta” de muita gente, as tentações de cada minuto.

 

         Vencida a primeira etapa, cresceu-lhe a necessidade de contar aos outros. E existirá por acaso algo menos ao gosto do fumante do que ouvir gabolices de quem precisa convencer-se de que deixou de fumar?

 

         Acabou chegando janeiro. Foi a São Paulo com o problema sob controle, mas passou a ver por toda parte um imenso painel que o perturbou e fê-lo cair em racionalizações constantes: estava na praça Califórnia, o primeiro cigarro nacional com filtro de carvão ativado, que elimina não sei quanto de nicotina, tantos por cento de alcatrão e sei lá que mais. Resistiu uns dias, até que capitulou. Em dado momento viu-se com um maço do tal cigarro e com fósforos. Almoçou no centro, com desusado vagar, a ponto de repetir o café. Depois, ainda sentado à mesa, destacou a fitinha vermelha do maço, levantou uma ponta do papel aluminizado; com uma batida incisiva fez apontarem  na abertura três cigarros, apanhou um, sentiu-lhe o aroma e o acendeu, um tanto emocionado. À primeira tragada sentiu o impacto – gosto esquisito na boca, um suorzinho frio na testa, a impressão de que um corpo estranho lhe corria todas as veias. Tontura e sentimento de frustração, resumível num misto de espanto e arrependimento. Pensou nas coisas mais desencontradas, desde “seis meses perdidos”, até “você sabe que não deve recomeçar”.

 

         Entrou num cinema e não conseguiu prender-se ao filme, que estava por terminar. Finda a sessão, na sala de espera fumou outro. Bom? Ruim? – Nada podia afirmar. A sensação talvez dominante foi a de cinza na boca. Reingressou na sala escura e ali tomou impulsiva decisão, depositando ma poltrona ao lado um maço com dezoito cigarros e saindo quase às carreiras.

 

         Fumante por assim dizer em licença, guarda um isqueiro Ronson  ganho de amigos. Acompanha tudo que diga respeito ao assunto. Recebe a agressão permanente da propaganda, que une a um simples cigarrinho um império de sexo, conforto e poder. Não diz categórico que “deixou de fumar”. Apenas que “não está fumando”. Quem sabe das coisas? De vez em  quando, ainda sonha que não resistiu de novo. Quando acorda, sente-se apenas aliviado.

 

         E o maço de Minister, datado? Ainda existe, com a anotação “18/7/68” bem evidente. Só o maço, porque os oito cigarros remanescentes, fumou-os uma empregada, muito pouco afeita ao simbolismo dos troféus.

 

(Texto revisto. Em sua forma original foi publicado
 no livro Tempo & Memória, de 1986.)

(emelauria@uol.com.br)

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