UM ÂNGULO NADA REVOLUCIONÁRIO
De paletó e gravata, porque mal acabado de sair de reunião compulsória e maçante, passei pela antiga redação em chuvosa manhã de sábado, faz já alguns anos.
Todos lá trabalhavam, desde o editorialista-secretário-revisor-redator até o inefável cronista social.
Eis senão quando, aparece um sujeito de seus vinte e poucos anos, à procura de alguém que lhe fizesse o favor de testemunhar o casamento civil. O padrinho escolhido, sabe-se lá por quê, não comparecera ao cartório. O noivo, barriga no balcão de anúncios, mostrava-se justamente nervoso, ainda mais que não conhecia pessoa alguma na cidade.
Ninguém na redação se dispôs a ajudá-lo naquele transe, um alegando falta de jeito, outro falta de tempo, outro falta de coragem de repassar a mesma cena. Então fui eu, mesmo porque estava de paletó e gravata, e o cartório era pertíssimo.
No breve trajeto, meio de brincadeira e mais para quebrar o gelo, indaguei do nubente se não dava para não casar. Invoquei-lhe até o surrado argumento de que se casamento fosse coisa ótima, dispensaria tanto papel e tanta testemunha. Ele me garantiu sério que já não dava. Não entrou em pormenores, naqueles pormenores que eu fizera renascer na sua mente, e assim a conversa morreu de inanição.
No cartório adequado estava à nossa espera o cidadão juiz de casamentos, a cidadã oficial-maior (interina), a noiva e poucas outras pessoas. O cidadão juiz de casamentos, com a severidade que o Código Civil impõe e a situação exige, disse a que estávamos reunidos. Mandou ler pela cidadã oficial-maior (interina) uma circunstanciada ata a respeito do evento, onde ficou expressamente determinado o regime de bens adotado pelos cônjuges, no caso o da comunhão universal. Pelo que depreendi, os dois só entravam naquela comunhão com os bens corpóreos propriamente ditos.
Mas o ponto culminante da breve cerimônia foi quando o cidadão juiz de casamentos perguntou ao noivo se era de sua livre e espontânea vontade casar-se com a senhorita ali presente. Ele, sem titubear, disse que sim, com isso agradando sobremaneira à noiva, que esboçou um sorriso de vitória, temerosa talvez lá no seu íntimo de um forfait ao pé da lei. Ao ser interrogada sobre o mesmo assunto, também ela respondeu sim,e baixou a cabeça, encabuladíssima, como se o monossílabo encerrasse uma pontinha de impudicícia. O noivo não esboçou nenhuma reação facial perceptível. As poucas pessoas ali presentes (todas desacomodadas em roupas domingueiras) entreolharam-se de modo significativo, mas não entendi o sentido das mensagens visuais. Ato contínuo, o cidadão juiz de casamentos declarou-os em nome da lei marido e mulher, usando um reverente tratamento vós. Os noivos nem se entreolharam.
Aí chegou a hora de apormos (assim mesmo, com a) nossos nomes em lugar próprio da ata. O noivo assinou com mão visivelmente mobralizada; a noiva colocou no papel apenas os seus apelidos de solteira, sendo observada pela cidadã oficial-maior (interina) que doravante passava a usar o sobrenome do marido. Esta palavra fez subir às faces da nubente um rubor que atribuí à novidade semântica. Apostas as assinaturas, o cidadão juiz de casamentos do distrito da sede da comarca de São José do Rio Pardo, Estado de São Paulo, República Federativa do Brasil, cumprimentando ex officio os recém-casados, fez entrega, ao presumível cabeça do casal, de uma caderneta de capa dura e formulou a ambos os melhores votos, no que foi secundado pela cidadã oficial-maior (interina). Nada mais havendo a tratar, apertei com calor a mão do noivo, tecnicamente meu afilhado; apertei a mão da noiva e dos demais circunstantes. Como é de costume entre eles, não corresponderam ao aperto: apenas estenderam as suas.
Voltei à redação e dei os trâmites por encerrados, não sem antes fazer aqueles escritores de plantão sentir que tinham todos perdido rara oportunidade de participarem de um casamento a seco, sem a mínima demonstração exterior de afeto. De um casamento que provavelmente persistirá até que a morte o dissolva. Apesar da lei.
Do
livro Tempo & Memória, 1986
|