No findante 2011

 


 Igreja de São Roque – detalhe da abóbada

 

Para mim e para você, que lê o jornal no dia da entrega, ainda está vigente o ano de 2011 e por isso é preciso tratá-lo com o máximo respeito.

Sabe como é: ano em seus estertores pode ainda aprontar umas poucas e boas, daí a necessidade de nos desdobrarmos em cuidados e considerações.

Mais umas poucas horas, e pronto: 2011 será passado tão irremissível quanto o tratado de Tordesilhas ou a queda da Bastilha, mas é sempre bom não se apressar em  dar os trâmites por encerrados. Aquela horinha adiantada no verão faz com que na realidade o ano-novo desponte pra valer à uma da manhã, quando muita gente já bebeu tudo a que tinha direito, beijou todas as caras e bocas disponíveis e desejou felicidades a um batalhão de pessoas que sequer conhece.

 

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À passagem de cada ano, por uma espécie de atavismo, sentimos a compulsão de fazer balanços do exercício findo, mas é preciso encarar essa penosa prática com suficiente espírito esportivo. Você, prezado(a) leitor(a), não tem obrigação alguma de lembrar o que foi considerado importante no decorrer de 2011.

 Quem guardou na cachola os nomes dos ministros de Dilma, defenestrados no decorrer  do ano? Guardar por guardar, guarde o nome de Nélson Jobim, o único que pôde sair pela porta da frente, garantindo ter votado no Serra e atirando frases de efeito, como a que buscou em seu xará Nélson Rodrigues: “Antigamente os idiotas chegavam devagar e ficavam quietos. O que se percebe hoje é que os idiotas perderam a modéstia”.

Exemplo de imodéstia sem desconfiômetro deu Orlando Silva, o ex do Esporte. Ganhou esta frase do senador Magno Malta: “ O corpo já está embalsamado, só falta enterrar. Dilma quer velar mais um pouco por causa da relação de amizade com o defunto.” Horas depois, Orlando Silva era exonerado, sem choro nem vela.

 

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Isso de retrospectos  e resenhas de minúcia sem par é prova de falta de assunto. Não há mal nenhum  em você ter-se esquecido de coisas assim:

aGilberto Kassab, prefeito de São Paulo, fundou um novo partido, o PSD, e disse  que a linha doutrinária que será seguida nem é nem de direita, nem de esquerda, nem de centro. Será, portanto, incolor, insípido e inodoro, como a água potável.

aJosé Sarney, eleito pela quarta vez presidente do Senado, diz que “só a paixão da vida pública me afasta do meu bem-estar social. Avalio a dimensão do sacrifício pessoal que estou fazendo”. É de cortar o coração, não é  mesmo?

aHugo Chávez, o da Venezuela, na posse de Dilma quis gastar o seu inglês do tipo the book is on the table  e sapecou esta filosófica pergunta a Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana: “HOW ARE YOUR WIFE?”, literalmente “Como vão sua esposa?”. Certamente foi o primeiro homem a duvidar da masculinidade de Bill Clinton, aquele presidente das estripulias com a estagiária Mônica Lewinsky.

aChegaram ao fim os dias de gastar o dinheiro que não temos, comprando coisas de que não precisamos, para impressionar pessoas que não conhecemos”.  Análise da crise americana por um tal Tim Jackson, professor da Universidade Surrey.

a“O mundo vai acabar por asteroides. Eu posso te assegurar isso.” – Garantia do cantor e compositor João Bosco, cujos pesadelos são alagados de chuvas de meteoros.

 

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Mas aposto que você guarda a salvo da corrosão da memória o que 2011 teve de importante para você, para seu círculo familiar e de amizades. O que bateu fundo no coração, na emoção, nos sentidos, nas fibras mais íntimas de seu ser – isso você não esquecerá, pois dessa matéria imprevisível, incontrolável se tecem os planos futuros, os anseios e a vaga noção de ser feliz, consciente ou não.

Cada um de nós vive em meio a círculos concêntricos, do formato daqueles que criamos quando atiramos uma pedra à superfície da  água calma. Os círculos criados por nós e desfeitos sem obstáculos são como a imagem do que pensamos, falamos ou agimos que não redunde em nada nas vidas à nossa volta. Quanto mais, porém, as ondas que emitimos se entrebatem,  se entrechocam e se enredam  com outras ondas que não geramos, tanto mais nossas vidas se emaranham em outras vidas. É assim que participamos das alegrias, contingências e incertezas da família, das amizades, do trabalho, da cidade e até do País.

Nem todos os embates são positivos ou voluntários: por vezes somos o epicentro de conflitos, de desagregações, de desconstruções. Causamos terremotos acima da medida na escala Richter, porque nada em nossa vivência é definitivamente mar de rosas ou vale de lágrimas. Assumimos todos os dias o tal dolo eventual ao provocarmos situações cuja extensão não podemos avaliar com segurança e cujos resultados trazem riscos que nem devemos pensar em assumir. Seremos, no entanto, responsabilizados por eles.

 

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Analise, pois, por este inesperado ângulo que lhe ofereço o que representou em sua vida o moribundo ano de 2011. Encontrará com certeza a justificativa de tantos pensamentos, sentimentos e projetos que de outro modo ficariam difíceis de entender. Na medida em que você  perceber a inevitabilidade de suportar certas convivências, ganhará também o discernimento de aproveitar o minuto que passa, aquilo que Santo Tomás de Aquino denominou  presente do presente. Sim, porque se você pensar bem, o passado já foi e o futuro nem é. Haveria, portanto, em nossa memória três tipos de presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro.  Num, recordamos; noutro, vivemos com a rapidez de um relâmpago; no último, arquitetamos.

Veja como você precisou ser paciencioso e atento neste 2011: sem essa disposição de espírito e esse propósito de alerta, você haveria ficado à margem de tantos acontecimentos, porque não teria percebido o instante exato e a maneira única de mentar a sua decisão e criar a coragem de ir buscar o que de repente passou a ser o mais valioso de seus tesouros, para cuja posse tudo valerá.

 

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Assim é, meu/minha caro/cara. Não se impressione com o que dizem ter sido importante em 2011. Por certo, nada ligado à política, ao esporte, à economia, à saúde, à educação. A história  pessoal sobrepuja a história geral e quase sempre nada tem a ver com ela. Importante para você em 2011 foi o que lhe fez elaborar ou reforçar uma coerente maneira de encarar a vida, enriquecendo-se em compreensão, tolerância e, se possível, até em sabedoria e graça. Importante foi o que lhe fez rever conceitos, o que alertou para a aparência ilusória das coisas. Importante foi você assumir suas realidades, aí incluídas as limitações da idade e do estado. Importante foi a renovação de sua capacidade de sentir, de dar/receber, de relevar os (des)acertos próprios e alheios e de perceber com clareza que quase nada depende só de nós.

 

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Afinal, meu/minha caro/cara, qualquer empenho em ser feliz está inevitavelmente ligado à possibilidade e ao desejo de fazermos os outros felizes, seja por você ter entrado em outras vidas, seja por você não haver indevidamente permanecido em outras, seja ainda pelo exercício de um convívio que envolve delicado equilíbrio.

No  mais,  é você não dar  muita atenção a horóscopos, previsões, projeções e vaticínios. Creia, até com certa exageração e infundado otimismo, que você é mesmo o dono do seu destino e o capitão do seu navio.

 

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Se você, que tem olho de lince e faro de perdigueiro, percebeu  nesta crônica algo já lido, uma espécie de dejà vu, lá vai minha confissão.  De fato, colei uma porção de coisas de um artigo meu chamado “No remoto ano de 2002”, publicado neste jornal  no comecinho de 2003 e no livro Vidro de aumento, em 2006.  Ao que tudo indica, autoplágio não é crime. Pode ser, no máximo, prova de algum cansaço, de algum tédio.

Não há como negar:  nestes nove anos, fui muito menos dono do meu destino e capitão do meu navio.

 

31/12/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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