TEMPO AO TEMPO
É difícil, quando não impossível, deixar de cair na velha armadilha do tempo e não se queixar da brevidade dos dias. Daí ao lugar-comum é um passo, dos mais fáceis de dar: basta o pensamento fluir sem nenhum freio para se entrar na senda tentadora e perigosa do saudosismo. A quadra é propícia, porque entre o Natal e o final de dezembro se vive a retrospectiva do ano que vai e a projeção do ano que vem, como se obrigatório fosse apresentar balanços e expressar propósitos. Balanços serão sempre imperfeitos, parcialíssimos, cheios de escusas e justificativas. Propósitos são facílimos de formular, impossíveis quase sempre de se cumprir. Machado resume assim: “Prazos longos são fáceis de subscrever”. Um só ano não é prazo tão longo, mas pode ser o único prazo disponível na vida de tantos. E então? Como ficamos? Não falar do tempo que vai? Não pensar nos dias vindouros? Quem sabe só falar sobre o tempo, no sentido mais alto que o pensamento humano conseguiu chegar? É um caminho, com seu encanto e asperezas próprios. Não deixa de ser fascinante lembrar que os conceitos mais profundos com que lidam os pensadores de todas as épocas nasceram de filósofos que só tinham à disposição a observação da natureza em si. Foi a visão direta do céu, da terra, dos campos e das florestas, dos mares e das montanhas que levou um Aristóteles a conceituar o tempo como “a esfera que abrange tudo”, ou seja, a esfera celeste, com seu movimento regulado, é que proporcionou a medida perfeita do tempo. Não só o céu com suas estrelas em eterno caminhar, mas o oceano com suas marés, os elementos tão mudáveis a cada fase do ano – as estações. Aberto esse caminho tão largo e até hoje inesgotável de conclusões, foi possível a Platão definir o tempo como “a imagem móvel da eternidade”. (Quem tiver a necessária sensibilidade e disposição, pare a leitura neste passo e se comova – sim, é de comover! -- ante o poder de síntese contido nesta notabilíssima descoberta: o tempo é a imagem móvel da eternidade.) Este Platão, quatro séculos antes de nossa era cristã, apenas olhando para as coisas da natureza, percebeu que o tempo reproduz no movimento, sob o aspecto dos períodos dos planetas, do ciclo constante das estações e das gerações vivas e de toda espécie de mudança, a imutabilidade que é própria do ser eterno. Há nisso o começo do entendimento da eternidade de Deus. Fique sossegado o eventual leitor porque vou parar por aqui com as divagações embasadas em filosofias alheias, embora sinta cócegas de citar alguma coisa do que pensaram Santo Tomás de Aquino, Descartes, Newton, Kant... Mas se enveredar por aí, como deixar fora do assunto Hegel, Bergson, Heidegger?... Não há, porém, por que não trazer à consideração a maravilhosa expressão de Santo Agostinho ao identificar o tempo com a própria vida da alma que se estende para o passado e para o futuro: De que modo, pergunta ele, diminui-se e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que não é mais, senão porque na alma existem as três coisas – presente, passado e futuro? Ninguém nega que o futuro ainda não existe; mas já existe na alma a espera do futuro. Ninguém nega que o passado não mais existe, mas existe ainda na alma a memória do passado. E ninguém nega que ao presente falte duração porque logo cai no passado; mas dura a atenção pela qual tudo será passado, e se afasta em direção ao passado. Não existem, propriamente falando, três tempos, o passado, o presente e o futuro, mas apenas três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Forte, não? As pessoas ou não têm tempo ou não criam o tempo necessário para pensarem no tempo. Como nós somos para nós mesmos a medida das coisas, tomamo-nos como olimpicamente imunes à passagem do tempo, a menos que nos examinemos seriamente ao espelho, a menos que nos comparemos com nossas próprias imagens de anos passados, a menos que pessoas descaridosas nos lancem em rosto duras verdades sobre nós mesmos. Daí o perigo de comemorações de meio século de formatura, das festas de bodas de ouro, de idas a velórios e de confraternizações em réveillons. Em 1999, rememoramos emocionadamente os cinqüenta anos de nossa formatura na Escola Normal Euclides da Cunha. Tínhamos sido uma turma numerosa e unida e já nos encontráramos em 1974, nas festividades dos vinte e cinco anos. Havia já, é claro, todos os sinais da erosão dos tempos, mas nada que tornasse alguém inindentificável. Pois bem, além dos desfalques provocados por mortes e doenças graves, baixou muito significativamente o número de participantes no segundo encontro. Alguns acharam que meio século tinha feito estragos tão grandes nas suas aparências, na agilidade mental, na própria apreciação da vida, que o melhor seria nem se mostrarem. Falou-se, apesar disso, muito vagamente num encontro dos remanescentes numa discreta comemoração dos cinqüenta e cinco anos. Não houve adesões... Há pouco mais de um ano, indo à festa das bodas de ouro de um casal de primos nossos, minha mulher e eu percebemos com muita nitidez a dificuldade de nos fazermos identificar e também de reconhecer os outros. Éramos os contemporâneos dos nubentes verdadeiras peças de museu pelas quais os descendentes dos homenageados não tiveram o menor interesse. Sentimo-nos estranhos no ninho, invasores de uma festa não nossa. Velório, então, tornou-se local perigosíssimo de encontros. As pessoas coetâneas dos finados idosos bem que poderiam usar, como em tantos outros lugares, elucidativos crachás com os nomes completos, apelidos, além das respectivas fotos dos tempos de outrora. Por essas e outras é que o momento mesmo da entrada de um novo ano assume aspectos tão dramaticamente significativos. Naquele exato instante, às vezes por mera convenção (como é o caso da meia-noite do horário de verão), as pessoas sentem-se como que esmagadas pela grandeza cósmica das coisas. A entrada de um novo ano se torna a expressão mais visível do fato jurídico chamado decurso do tempo. É um ciclo que se encerra, é outro que se abre, são responsabilidades que cessam para alguns, nascem para outros, renovam-se para a maioria. Ah, sim, há o renascer das esperanças, os votos nem sempre apenas convencionais, a redescoberta faculdade de perdoar, o desejo de reconciliar, o momentâneo empenho de se contribuir de algum modo para a felicidade alheia, para o bem-estar coletivo, para a paz universal. Daí a condescendente paciência que precisamos ter com a fugidia lágrima de um, com o abraço mais apertado de outro, com o desgaste das fórmulas de sociabilidade postas em prática por aquele. É um momento cósmico que a todos assusta porque revela com mais clareza a pequenez do homem em face do Universo, a transitoriedade da beleza, a fragilidade dos bens, a precariedade da expressão dos afetos. Condescendente paciência com os que estão saudosos demais, cerceados demais... Condescendente paciência com os que estão de pilequinho, na ocasião dotados de especial facilidade em passar da mais esfuziante euforia para o choro mais sentido e verdadeiro, fortalezas emocionais prestes a ruir, a custo controlando a vontade de tornar pública aquela secreta verdade, tão essencial e tão mascarada. Mas a hora é de confraternizar. Relaxemos e festejemos. Feliz 2006!!!
31/12/2005 |