Que fim terá levado?

 
Vista antiga da Praça 15 de Novembro.

 

- Aquela menina loirinha, de cabelos cacheados, que estudava com a gente no grupo escolar? Chamava-se Alda, tinha olhos azuis, pele rosada e seu pai era escultor. De repente, sem um adeus para ninguém, sumiu do mapa e nunca mais se teve notícia dela.

 

- O rapaz meio caipira, que morava lá nas lonjuras do Pito Aceso, vinha descalço à escola, usava sempre a mesma roupa? Sabia tudo de geografia, história. Não gostava de matemática. Escrevia bem, apesar de nunca haver lido um livro em casa. A professora de quarto ano punha muita fé nele.

 

- O sujeito meio displicente nos estudos, mas capaz de altos feitos, como o de saltar do alto da ponte metálica e se afundar nas águas revoltas do rio Pardo? O professor de latim não gostava dele, chegou mesmo a lhe prognosticar um futuro meio ingrato, tantas as suas confusões, mentiras e enrolações.

 

- Aquela mocinha, vinda não se sabe de onde, que de repente passou a assistir às aulas da segunda série do ginásio? Seu sobrenome era Chichi e ela explicou a um professor (e por tabela a todos os alunos) que se pronunciava Quíqui, era de origem italiana.  Achamos mais interessante continuar a dizer que ela se chamava Xixi, o que deve ter contribuído para ela ficar tão pouco tempo entre nós.

 

- Por onde andará Nadir? Nadir Elza, coleguinha de classe lá no Cândido Rodrigues. Ela foi embora com a família, mas tempos depois voltou só. Namorava então um amigo nosso, por nome Vítor. Um dia ficamos sabendo que os dois tinham fugido para casar. Fugiram a pé. Nunca mais o casal deu as caras.

 

- Aquela senhora tão desajeitada que, certamente por premente necessidade, se aventurou a substituir nossa professora de Canto Orfeônico numa endiabrada segunda série ginasial? Foi muito triste o dia em que ela chorou e nos pediu pelo amor de Deus que a deixássemos dar aula. Ela precisava muito daquele dinheiro, explicou.

 

- Aquele casal tão chegadinho que se devorava com os olhos em qualquer lugar? Quando eles iam para recanto mais escondido do Jardim do Artese, nossa turminha se colocava em posições de observação privilegiada.

 

- Aquele professor de português, tão jovem, tão sabido, tão bem-intencionado? Ninguém prestava atenção a suas longas explicações sobre as diferenças entre objeto indireto e complemento terminativo. Foi prestar concurso e não deve ter sido aprovado. Não voltou à cidade. Pura vergonha, imagino.

 

- As duas irmãs que muito se odiavam? Uma era até bonita, tirava boas notas mesmo sem estudar. A outra, feia, rosto que lembrava lixa, decorava coisas e coisas, mas sempre ia menos bem nas provas do que a irmã-rival. Um dia se agarraram pelos cabelos, trocaram sopapos e xingamentos na frente de todo mundo. A inspetora de alunos, que entendia mais de psicologia do que Jean Piaget , disse a elas que não as levaria ao diretor. Elas que se entendessem na rua ou em casa. Aquilo era briga de família.

 

- O sujeito que detestava o que devia ensinar? Sabia muito pouco de trabalhos manuais, se tanto a planificação do cubo. Sempre escalava um aluno para ficar de olho na porta de entrada da sala e avisá-lo da chegada do diretor, que o mantinha sob vigilância. No fim do ano, foi dispensado das aulas e sumiu da cidade. Ninguém sentiu sua falta ou sequer lhe guardou o nome.

 

- A linda judia de longos cabelos sempre trançados? O pai tinha uma pobre lojinha, mas seu forte era a freguesia que lhe comprava coisas a prestação. O pai, conhecido erradamente como Russo, percorria de charrete seus fregueses da cidade e anotava, acho que em hebraico, numa caderneta os pagamentos recebidos. Deve ter levado alguns calotes, mas com certeza pôde fazer estudar os filhos em São Paulo e até reservar um bom dote para a loura filha, prometida em casamento a alguém, desde criança.

 

- Meu vizinho aqui da rua, meu companheiro de futebolzinho com bola de meia ou com botões? Este veio aqui se despedir de nós e dizer que ia para Santos trabalhar como aprendiz de alfaiate. Assim que pudesse, voltaria para cá e primeiro trabalharia como empregado, mas logo que pudesse, queria abrir a sua própria alfaiataria. Que eu tivesse sabido, jamais voltou à cidade nem para visitar os tios que o tinham criado como filho.

 

- E a Célia Mirtes? Era da mesma classe de quarto ano primário. Nunca me esqueci de seu uniforme todo branco, os quatro risquinhos no bolso. No ginásio ela não entrou. Talvez até continuasse a morar nesta cidade. Quem sabe casou, teve filhos e netos e ainda more por aqui, em chácara ou sítio?  A cidade é pequena, mas tudo é possível. Setenta e três anos depois, alguém me dá notícias de Célia Mirtes, de seu uniforme branco e de seu bolso com os quatro risquinhos de cor azul?

 

- E aqueles rapazes de fora, que vieram fazer o Científico aqui? Éramos quarenta e sete no primeiro ano, ao menos metade de não rio-pardenses. E menos de vinte na conclusão do curso. Dificílimo, desanimava tanta gente. Havia alunos de Grama, Caconde, Guaxupé, Cajuru, Muzambinho, Vargem Grande, Itobi... Nesta longa vida, devo ter falado com dois ou três deles e sabido da morte de alguns outros. Muito estranha aquela nossa classe, tão diferente da Escola Normal. Enquanto os normalistas sempre foram de reuniões e de festas (comemoramos os vinte e cinco anos, os trinta, os cinquenta e até os sessenta e cinco de formatura), os do Científico só pensavam naquilo: o vestibular. Muitos entraram direto em boas faculdades, tiveram êxito profissional, mas nunca ninguém pensou numa festa de confraternização, ao menos aos vinte e cinco e cinquenta de formatura.  Que eu saiba, dos rio-pardenses só estamos vivos o Benedicto de Araujo Netto, oficial de Justiça, e eu. Nós dois, mais Júlio Darin e Waldemar Jorge fazíamos os dois cursos ao mesmo tempo. Nove horas de aulas por dia. O primeiro que morreu foi o dentista Júlio Darin.  As mais recentes perdas foram Héber Pereira Fontão e Râmisa Jorge, a única mulher da turma.  Com ela mantive firme e cordial amizade, colegas que fomos como professores no mesmo “Euclides da Cunha”, tão significativo em nossas vidas. Héber, dentista conceituado, foi meu compadre. Eu batizei Maria de Lourdes, além de ter morado na casa dos pais dele (Antônio e Olga) em Vargem Grande do Sul. Mantenho firme amizade com Héber Luís, filho de Héber e Lourdinha Fontão.

 

31/10/2015
emelauria@uol.com.br

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