DECLARAÇÃO DE AFETO

         Um dia destes, num acesso de admiração explícita pelas modernidades, falei escancaradamente bem do computador e seus recursos, da informática e seus mistérios, da Internet e os mundos que abre.

         Meu jovem interlocutor fez uma cara não sei se de espanto ou de tédio.

         Procurei conquistar sua adesão com argumentos  infalíveis quando aplicados a velhos ou madurões:

         “Você já se esqueceu do trabalho que dava, por exemplo, datilografar textos longos e com cópias?”

         A resposta do efebo veio natural e imediata:

         “Nunca datilografei; desde muito pequeno lido com os computadores e aprendi a tirar deles o melhor proveito”.

         Bem que busquei a resposta certa à objeção, algo que remetesse a uma ponta de presunção, a um pouco de gozação com o muito mais velho, no caso eu. Não encontrei. O rapaz simplesmente falava a sua verdade e não tinha vontade alguma de elogiar computadores só porque em outros tempos, gerações e gerações penaram  em vetustas máquinas de perdidos nomes como Remington, Olivetti, Underwood, em empacadores mimeógrafos e em outras velharias que tais.

         Assim que pude, comprei uma Smith-Corona zerinho semiportátil que me serviu, e bem, por mais de vinte anos. Um dia, internei-a na oficina de um colega de sauna para um geral acerto. Já não posso assegurar se esta providência trazia embutida a idéia de botá-la a escanteio. O fato é que acabei apanhando logo uma Olympia, daquelas alemãs reforçadas, tipo bonito e recursos tecnológicos que nunca aproveitei de todo. Enquanto isso o técnico saunista me enrolou, enrolou, ante minha tácita aceitação de sua demora em me devolver a Corona. Depois de mais de ano ele me anunciou meio sem jeito um desastre: ninguém na oficina soube bem por quê, acabaram perdendo aquela placa frontal que ocultava os tipos da maquininha e lhe assegura um ar mais bonito, moderninho. Sem a tal placa e ainda mais repintada num tom cor-de-rosa meio comprometedor, acabei me esquecendo dela e nunca a trouxe de volta. Por onde andará a relíquia?

         Contei ao meu implume interlocutor como era exasperante datilografar  quando (e era meu caso) não se dominava bem a técnica e se aplicava o cata-milho declarado. Uma palavra batida errado, um trecho pulado, uma frase truncada – tudo era risco de se perder o trabalho de muito tempo. Ah, era de invejar a habilidade de alguns datilógrafos que mesmo com instrumentos antiquados e emperrados, produziam obras de arte, impecáveis na correção e na estética. Não sei se alguém conheceu outros ases do teclado, mas nutri sincera admiração por alguns deles: Totó Tessari, capaz de acompanhar depoimentos agitadíssimos sem perder uma palavra, sem cometer erro algum; José Affonso Corrêa Netto, que redigia direto e rápido bons textos jornalísticos enquanto papeava com pessoas à sua volta; Oswaldo Castaldi, caprichosíssimo e dotado de especial intuição que o levava a manter uniforme cada final de linha, jogando com espaços no meio da frase e usando o hífen ora mais solto, ora mais concentrado, na partição dos vocábulos.

         Admirando o trabalho de Castaldi na Faculdade de Filosofia e na Câmara Municipal, não tive dúvida em solicitar-lhe a datilografia de todo o conteúdo de meu livro Ensaios Euclidianos quando da remessa dos originais para a Editora Presença, no Rio de Janeiro. O dono da gráfica, o Sr. Dobrinescu, um romeno barbudinho e cordial, não deixou de notar a beleza e a correção do texto datilografado:

         “Nunca vi um original tão limpo, tão bem cuidado!”

         Claro que fiz chegar ao Oswaldo Castaldi aquela apreciação tão favorável e a repeti num exemplar que lhe dediquei.

         Pena o final de sua vida, tolhido nos movimentos, sem poder falar, sabe-se lá se ao menos ouvindo. Visitei-o algumas vezes logo depois de seu acidente vascular-cerebral e então me perguntava o que ia atrás daquele rosto limpo, rosado, que até se diria feliz no seu total mutismo de olhos azuis (ou verdes?).

         Oswaldo Castaldi, meu aluno temporão na Escola Normal Municipal, morreu agora em agosto, tendo muitos de seus amigos sabido da notícia apenas pelos jornais. Voltou para o silêncio da sua sempre lembrada São Manuel.

         Fiz um grande mas necessário desvio de percurso, a partir dos  elogios iniciais ao computador. Coloquei ainda o meu verde interlocutor a par de tantas outras insuperáveis dificuldades de outros tempos, que hoje qualquer micro resolve, como a de compor um ótimo jornal com os recursos corriqueiros disponíveis.

         Pensei em recuar até o século XV e resgatar a memória de Guttenberg, autor da mais ampla revolução cultural de todos os tempos -- a impressão de livros, começada pela Bíblia. Preferi, ao invés, falar da velha e pobre caixa de tipos da Resenha de Paschoal Artese, montada a mão, letra por letra, até o seu número final . Revivi ainda o salto de qualidade da Gazeta do Rio Pardo, antes um modorrento semanário que chegava até a sair com páginas em branco por falta de assunto, e depois ressuscitado pela tecnologia de ponta das linotipos e das impressoras descomunais que faziam o jornal em duas ou três horas. Gazeta diária por breve período, mas por anos e anos a nossa preocupação semanal.

         Como não sorrir ao lembrar as exigências mais que rigorosas de Hersílio Ângelo, sempre empenhado na revisão da revisão, para desespero do Gino, do Alipinho e do Abelardo? Houve ainda um castigado texto meu, desses  que segundo diziam no jornal só eram lidos pelo autor e pelo linotipista: mereceu do Abelardo no fim da composição uma linha como esta: !”#$&()=?»^»$#”!PQP-PQP-PQP...

         Hoje é o que se vê: texto digitado em casa, corrigido só pelo autor. Se quiser manter o contato humano com o pessoalzinho do jornal, vai à redação levar o disquete. Caso contrário, remete tudo por e-mail, na horinha.

         Viva, pois, o computador e suas adjacências.

(31/08/2001)
(emelauria@uol.com.br)

 

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