UMAS PALMADINHAS OU NÃO?

  Nunca esperei ter de me manifestar a respeito de assunto no meu entendimento de ordem apenas familiar. Ainda levo a sério o princípio constitucional praticamente esquecido segundo o qual a educação é dever da família, que pode delegá-lo ao Estado, sem se eximir de participar do processo.

Pois não é que está em discussão no Congresso brasileiro projeto de lei de autoria do Executivo  que proíbe categoricamente o uso de qualquer forma de coação física sobre as crianças?

Ou em outras palavras:

O projeto altera a lei que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e estabelece o direito de eles serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de trabalho cruel ou degradante.

Pesquisa da Folha de S. Paulo, que ouviu mais de dez mil pessoas, conclui que 54% dos entrevistados se manifestaram favoráveis à manutenção de palmadas educativas, 36%  se declararam contra, e 10% não se posicionaram.

Também se fica sabendo que os meninos levam mais palmadas que as meninas (74% e 69%, respectivamente) e que as mães batem mais do que os pais.

Muito provavelmente meu leitor terá a mesma reação que eu tive – a de examinar situações pessoais e querer transformá-las em solução geral .

Nos meus afastados tempos de criança, não passava pela cabeça de ninguém a mínima dúvida sobre o direito/dever de a família e a escola  exercerem ações corretivas sobre crianças e adolescentes., Também ninguém discutia se criança devia, ou não, trabalhar desde muito cedo e colaborar  na melhoria do orçamento familiar. Os tempos mudaram e em muitos aspectos a situação se agravou em desfavor dos menores, tantas vezes ociosos, sem oportunidades de, como então se dizia, “aprender ofício”...

Muitas mães, no começo dos anos letivos,  iam às escolas primárias querer assegurar que seus filhos fossem matriculados nas classes regidas por gente “enérgica”, que pusesse os indisciplinados na linha, podendo contar com a prévia e incondicional aprovação familiar. Ai do pobre meninote que, levando uns cascudos em classe,  ainda cometesse a besteira de contar isso aos pais, na esperança de vê-los colocados a seu favor. Ao contrário, na maioria das vezes não só os professores eram apoiados como ainda o pobre meninote levava em casa o resto do castigo!

Quem se atreveria a discutir as consequências de uma sova aplicada pelo pai ou pela mãe ao rapazinho malcriado, renitente no estudo,  na execução das tarefas domésticas que lhe cabiam?

Quem se atreveria a contestar a autoridade da professora ou do diretor do grupo escolar  que distribuísse uns tapas, pescoções, beliscões a engraçadinhos indisciplinados e atrevidos?

E quem, por outro lado, não sofreu ou testemunhou exageros da família e da escola na dosagem desses corretivos? Houve casos escabrosos de tremendas agressões perpetradas sem nenhum tipo de comedimento por pais, por padrastos,  por professores, até por funcionários escolares.

Ficou famoso aqui em nossa cidade o lamentável incidente em que uma irada professora, sem temer nenhuma punição funcional, agrediu mortalmente seu aluno encapetado com a ponteira de  compasso escolar, daqueles usados para se traçarem círculos ou seus segmentos no quadro-negro.

No curso ginasial, a situação já era bem outra. Nem é de meu tempo de estudante o caso, comentadíssimo, do professor que, num acesso de cólera, agrediu fisicamente um aluno seu nos primórdios do “Euclides da Cunha”. A família do rapazola levou o caso para frente e conseguiu a exoneração do professor interino, um poeta carregado de filhos, que teve de sair da cidade e procurar outro meio de subsistência no Paraná.

Não presenciei no ginásio nenhum incidente de agressão física a alunos mal educados ou insolentes. Lembro-me, isto sim, de um colega de terceira série atirando raivoso um apagador contra o espantado lente de Português...

 Os professores dessas épocas tão recuadas se valiam de outras armas, como a aplicação a granel de zeros por desatenção ou indisciplina e o encaminhamento dos mais arrelientos à direção da escola, que os suspendia das aulas. Difícil era a semana em que no quadro de avisos, no pátio do recreio, não aparecesse um ou mais comunicados de suspensão desses indisciplinados. Havia muita desistência  daquelas pessoas que não se adaptavam ao regime rigoroso das escolas, onde se zelava até pelo bom estado das fardas, pela graxa nos sapatos, pelas unhas aparadas, pelos cabelos em ordem, pela subida silenciosa rumo às salas de aulas...

Fui aluno, no curso primário, de uma professora  famosa por sua disciplina para lá de rígida.   Vagas em sua sala eram disputadíssimas e os pais lhe davam plena liberdade de tratar os filhos como bem entendesse. Ela exercia sua autoridade até fora da escola. Não admitia, por exemplo, que aluno seu fosse ao cinema duas vezes por semana, acompanhando dois filmes seriados. Ele que escolhesse um desses dias. Ela cobrava isso das famílias. Seu  modo particular de castigar os maus alunos: agarrá-los pelos cabelos da costeleta e puxar, puxar, até que as lágrimas lhes brotassem dos olhos.

Meu pai nunca me bateu, mas eu entendia o significado de sua voz enérgica e de seus olhares disciplinadores. Minha mãe me deu uma ou outra palmada e me trazia “num cortado”, como se dizia, exigindo-me trabalhos compatíveis com minha idade e meu tamanho: ir comprar leite ou carne, levar um tabuleiro de roscas para assar na Padaria Alemã, aguar canteiros de verduras, rachar alguns gravetos... Nada de constranger ou vexar.

Lá uma vezinha ou outra, dei umas palmadas nos filhos; as filhas não precisaram. De qualquer modo, coisa pouca, que mais espantava do que doía. Nunca perdi de vista o conselho de Salomão, em Provérbios, 13:24: “Aquele que poupa a vara odeia o filho, mas aquele que o ama tem o cuidado de discipliná-lo”. Como em tantas outras questões, o segredo esteve em acertar a calibragem do castigo.

Como geralmente pensamos os problemas coletivos  pela nossa experiência pessoal, quase nunca temos perfeita noção deles sem nos valermos do tirocínio dos especialistas. Assim, fico sabendo que os psicólogos, favoráveis às vedações que a nova lei abriga, admitem que mudanças comportamentais por causa delas só se verificarão em uma geração, coisa de vinte e cinco anos. Na Suécia, por exemplo, em 1980 a maioria se mostrou a favor de umas palmadas repressivas. Hoje a opinião geral é outra. Vinte e um países europeus classificam a palmada como cultura da violência e a proíbem na família e na escola.

Outro dado que geralmente passa despercebido é que a lei tem de pensar nas crianças e adolescentes  fora do ambiente sadio e acolhedor das boas famílias e das boas escolas. A lei tem aplicação em situações que normalmente fogem à percepção comum. Como resume um psicólogo educacional da Unicamp, a lei vai proteger também a criança no orfanato, na casa de correção. Palmada, conclui ele, não ensina nenhum princípio, nenhuma ética.

 Além do mais, casos como o recentíssimo da procuradora aposentada que seviciou menina de dois anos (estava em vias de adotá-la legalmente) levam a reconhecer que neste conturbado mundo em que vivemos, não corre farto o leite da bondade humana, cabendo, pois, ao Estado assumir funções que deveriam ser da exclusiva alçada da sociedade civil organizada, da família, mais especificamente.

Em suma: minha disposição de espírito ao iniciar a elaboração deste artigo era de mostrar tendência favorável a não se proibir o uso familiar/escolar de umas poucas e boas palmadas, com função muito mais de advertência do que de punição. À vista, porém, de tantas situações dolorosas de violência explícita contra menores e adolescentes, à vista de tantas formas de desagregação causada pela instabilidade conjugal, pela promiscuidade,  pela bebida, pela droga, pela quebra da autoridade educacional, declaro-me favorável ao espírito do projeto de lei em exame no Congresso Nacional.

Sou de uma geração que naturalmente levou palmadas. No entanto,  a degradação familiar hoje instaurada no Brasil e o crescente desprestígio da educação formal  me levam a pensar que  a ingerência do Estado nessa questão, que deveria ser de foro íntimo, faz-se indispensável, como único meio de barrar uma forma de prepotência de adultos contra crianças.

Apesar de se saber que a maioria dos atos relacionais entre pais e filhos continuarão morrendo no âmbito familiar, sem nenhuma repercussão externa, logo mais será verdade  a situação até agora levada como anedota:

O menino de seus oito ou nove anos, magoado com as palmadas que acaba de levar do pai, ameaça:

- O senhor vai ver! Daqui a uns dias nos encontraremos no tribunal!

              

31/07/2010
emelauria@uol.com.br)

 

Voltar