Pensando na vida e na morte

 
Ponte pênsil do Poliesportivo do Rio Pardo.

 

Sempre me pareceu pedagógico e até obrigatório dar umas chegadinhas ao cemitério, de preferência em dia de pouco ou nenhum movimento, para não ter de conversar enquanto caminhasse por lá. Lembro-me sempre de um conto de Carlos Drummond de Andrade – “Flor, telefone, moça” – e me abstenho de tocar em qualquer objeto de qualquer sepultura. Não quero voz nenhuma do além me cobrando alguma coisinha apanhada  ao acaso. Nem mesmo uma florzinha murcha, de impossível reposição.

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Há as paradas obrigatórias. A  primeira, sem gestos nem palavras, em frente à sepultura de Marina (e meu último endereço, em futuro incerto e não sabido: Rua 7, nº 16). Encantadora  a vista: o cemitério que avançou até onde pôde. Depois o rio, o Cristo ao longe, a colina majestosa na outra margem, a paisagem suave, casinhas aqui e ali, pequenos bosques, sinais das grandes e extintas  culturas do café,  vaquinhas pastando em cena de presépio. A estradinha sinuosa que leva a ponto altíssimo,  onde estão as antenas de estações repetidoras de tevê. Um primor. Um convite à reflexão.

  Não há como não trazer à memória os dois mais famosos sonetos de saudade em nosso idioma: um, de Camões, que começa assim: “Alma minha gentil, que te partiste tão cedo desta vida, descontente...” e outro, de Machado de Assis, dedicado à esposa Carolina: “Querida, ao pé do leito derradeiro em que repousas dessa longa vida, aqui venho e virei, pobre querida...”

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Quanta gente com quem convivemos já morreu! Familiares em profusão. Colegas de estudos, colegas de profissão, colegas de tiro de guerra, colegas de política... Minha faixa de idade está plenamente convocável, ou melhor dizendo, está mesmo é na primeira fila, na linha de frente dos chamamentos. Não faz muito tempo, o Trinca, aqui do DEMOCRATA, pediu-me que identificasse as pessoas fotografadas na inauguração da ponte ali do início da Rua Marechal Deodoro, que a meu pedido tem o nome do doador do terreno, meu sogro Domingos Parisi. Éramos dez na foto. Só eu estava vivo. E a foto não era tão velha assim.

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Aí, cumpridas as visitas  de saudade ou de  obrigação, se houver tempo é exercício  de humildade andar por entre as ruelas, espantar-se com um nome de quem você nem sabia que tinha morrido; conferir datas, calcular idades, estabelecer graus de parentesco. Tirar mil conclusões ou apenas  abanar a cabeça para confirmar  que a vida é assim mesmo.

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Ah, os erros das inscrições, as falsas declarações de um amor eterno que não suportou senão alguns meses de viuvez... “Aqui jaz os restos de Fulano”... O verbo jazer, com o sentido de repousar, ficar  imóvel, não se digna em muitos lugares deste cemitério de concordar com seu sujeito plural. Diz-se corretamente “Aqui jaz Fulano”; mas  “Aqui jazem os restos de Fulano”. Tão difícil assim? Lembro-me agora de que quando eu lidava com gramática histórica, com a formação da língua portuguesa a partir do latim vulgar, havia um curioso item que tratava das fontes desse mesmo latim, já modificado profundamente pela pouca vivência com a língua escrita da grande maioria de seus usuários. Entre essas fontes, que demonstravam as diferenças entre um latim culto e o de fato usado pelo povão, que deu origem às línguas neolatinas, estava uma que me chamava a atenção: as inscrições tumulares. Isso mesmo, as deturpações da linguagem documentadas pelo que se escrevia nas sepulturas. Isso há mil anos. Até hoje é assim.

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Sem esforço algum, vêm à mente as muitas histórias de amor, sacrifício, ingenuidade e tragédia relembradas à simples passagem perto de um nome, de uma referência. O rapaz que morreu afogado num piquenique de 1º de maio. A moça que sucumbiu num desastre de moto. A mulher que se jogou da ponte. O homem que viveu cento e cinco anos. O sujeito que morreu de amor contrariado. O túmulo do padre milagroso. Os  ricos mausoléus familiares. As covas rasas.  Assuntos muito bons para crônicas, contos e até novelas, bem ao gosto de nosso público. Rodolpho Del Guerra, o cronista-mor da cidade, já tratou copiosamente  do tema e apesar dos cuidados, passou lá uma vez ou outra por maus momentos, porque mexeu em vespeiros não extintos, relembrou situações picantes,  apenas na aparência aquietadas nos corações envolvidos. Acho que jamais escreverei sobre umas coisas muito incomuns que de mil fontes fiquei sabendo. Há que se respeitar.

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Não dá para não lembrar alguns episódios originais, direta ou indiretamente relacionados com o nosso hoje lotadíssimo cemitério:

 

1. Luís Carlos, o Bolacha,  na terceira série ginasial de 1945, preocupado em fortalecer sua dissertação sobre o Dia de Finados, pedida pelo austero mestre de Português, pergunta baixinho ao colega de lado o que estava escrito no alto do antigo portão do cemitério. Frase verdadeira: “Lembra-te que és pó e em pó te tornarás”. Frase que o colega de lado assoprou, não sei com que grau de malícia e de refinado humor: “Lembra-te que és pó e quando chove tu viras barro”. Quem é sobrevivente daquela inesquecível terceira série, que produziu alguns doutores e diversos delinquentes, na sagaz observação do recém-finado José Carneiro de Araújo Filho, sabe da veracidade do que aqui reproduzo.

 

2. Um dia, morreu o avô do Celso, da mesma terceira série. O professor, ignorando o fato, cobrou-lhe por sorteio a tarefa de casa.

- Eu não fiz. Ontem foi o enterro de meu avô.

O álibi era de cabimento.

- E o senhor, seu Fausto?

(Era no tempo em que invariavelmente os mestres tratavam os alunos por “senhor”, “seu”.)

O Fausto, na verdade o Tato, mas professor não cogitava de saber apelidos de alunos, o Tato deve ter repassado mentalmente o sempre remanejado arquivo das desculpas esfarrapadas. Saiu-se com essa:

- Eu não fiz. Ontem fui ao enterro do avô do Celso.

 

3. Quando, em 1999, comemoramos cinquenta anos de formatura na Escola Normal Euclides da Cunha, um item da programação nos levava ao cemitério, para a deposição de flores nas sepulturas de professores e colegas mortos. Conseguimos localizar todos, menos uma colega das mais retraídas da turma. Já estávamos desanimados da procura em vão, quando alguém anunciou em tom vitorioso: “Achei! Achei! Estava aqui, bem na rua principal que vai dar na capela e nem notamos!” Aliviados, depusemos as flores na descoberta sepultura e fomos embora depressinha. Não só eu, outras pessoas também notaram a impossibilidade: o nome da moradora daquele velho túmulo batia direitinho com o de nossa colega. Já a data de falecimento não: tinha-se dado em 1913. Como todos nós estávamos cansados, ficou tacitamente combinado que o que valia naquele tipo de homenagem era a intenção.

 

 

31/05/2014
emelauria@uol.com.br

 

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