Vai doer

 

            Bate aqui no peito um mal-estar daqueles. Faço o que posso para esquecer sua causa, mas está difícil. Nem preciso fechar os olhos: até com eles abertos, revejo o casalzinho sentado aqui na biblioteca, esperando confiante que eu examine assim na hora aquele cadernão manuscrito de letra feia e cerrada. Duzentas folhas aproveitadas ao máximo.

            A mocinha – dezoito, vinte anos? --  garante que ali está um livro, que quatro ou cinco pessoas leram aquilo tudo e gostaram muito. Foi estimulada a me mostrar as primícias de seu esforço e se faz acompanhar do namorado.

            -- O Sr. se lembra de mim quando eu morava aqui perto, na casa que a enchente pegava sempre?

            Debaixo daquele rosto barbudo, daqueles óculos, daquele macacão de mecânico e daquele bonezinho vistoso, não ressurgiu a figura de nenhum menino que um dia tivesse residido na casa ao lado.

            -- Já faz tempo, hem? – desconverso.

            -- Se faz...

            Examino algumas páginas, sem parágrafo algum, com tantas impropriedades  gramaticais e narrativas. Aflora-me à lembrança o julgamento cruel que atribuem a Mário de Andrade: “Não li e não gostei”. Coisa assim não seria de se dizer à mocinha que me parece corajosa, mais apta a ouvir uma verdade dura do que seu acompanhante, presente ali por amorosa solidariedade apenas.

            -- É... E o que é que você estuda agora?

            -- Eu não estudo.

            -- Mas estudou até onde?

            -- Muito pouco.

            Ela não quer ser sabatinada a respeito de sua vida, de seu preparo escolar. Quer que alguém, supostamente mais enfronhado nesses assuntos, lhe dê uma orientação de como publicar um livro. Faz fé na sua intuição e no seu talento. Não quer conselhos, quer caminhos. Por isso me procura, por sugestão de pessoa conhecida.

            -- Em primeiro lugar, você precisaria alguém que datilografasse direitinho o texto.

            -- Isso é fácil; eu tenho uma amiga que bate bem.

            -- Não é só datilografar, é datilografar corrigindo, remodelando, acertando as palavras, as frases, os diálogos, melhorando a expressão das idéias.

            -- Não está bom o que eu escrevi?

            -- Não. Não está. Você comete muitos enganos no escrever as palavras, no pontuar, no expor as coisas.

            -- Mas, e o assunto?

            -- Sabe, as muitas falhas da forma prejudicam o enredo – foi o que resumi o mais delicadamente possível.

            -- Então o Sr. acha mesmo que não está bom?

            -- Não está em condições de ser publicado.

            -- É, mas eu tenho lido livros piores que o meu.

            -- ...

            -- Em quanto o Sr. acha que ficaria esse tal trabalho de datilografar corrigindo?

            Depois  de antecipar que eu não lhe faria o serviço, apanho uma calculadora, estimo uns custos muito por baixo e lhe apresento um número. A reação, santo Deus! Retomo a sábia observação do velho Machado a respeito de ser melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar.

            Os dois continuaram ali abancados, mas a alma dela, a esperança dela despencaram cadeira abaixo.

            -- Tudo isso?

            -- No mínimo. E tudo sobe dia por dia.

            Percebi que por um bom tempo, mais uma autora brasileira continuaria inédita, mas era preciso desanuviar o ambiente, dar alguma informação concreta de como se procede para publicar um livro.

            -- Depois de ter os originais em boas condições, você procura  uma gráfica ou editora que lhe cobrará um bom tanto para que seu livro seja posto à venda.

            -- Puxa!

            Os dois foram recolhendo aqui e ali os caquinhos do vaso tão esperançado que me haviam trazido e se prepararam para sair.

            -- Sabe, eu vou pedir a um tio meu. Ele também é professor. Ele passará tudo a limpo para mim.

            -- Isso! Faça mesmo assim.

            Ela sai dali com raiva, quem sabe não apenas de mim, mas da percepção da distância que eu lhe interpusera entre o sonho e a realidade. Leva bem apertado ao peito o seu livro que ainda terá sucesso, eu vou ver.

            O rapaz lembrou-se  mais uma vez da casa ao lado e de uma noite em que me vira empunhando uma lanterna para avaliar a subida do córrego. Antes isso: ele não estava muito por dentro daquela idéia de alguém querer publicar um livro.

            Ela, sim. E vai doer.

 

  

            Até aqui, o texto de 1988, já publicado em livro.

             Não sei se a escritora em potencial  foi bem-sucedida no seu intento. Nunca mais ouvi falar dela nem do rapaz.

             Se as coisas tiverem corrido como seria de se esperar, os dois hoje estarão casados, com filhos crescidos e ela quem sabe ainda alimentando o sonho de publicar suas visões de mundo.

              Hoje tudo ficou mais fácil. O computador nem deixa a pessoa cometer certos erros crassos e faz ficar muito mais limpa a apresentação dos textos. É possível publicar-se um livro sem se sair da cidade, mas quanto menor a tiragem, mais caro o exemplar.

              Fico pensando no sucesso fácil de alguns, de um Paulo Coelho, por exemplo. Ao tentar ler um livro dele, tive a mesma sensação que me causou aquele calhamaço de duzentas páginas manuscritas apresentado pela mocinha. Achei que essa dificuldade de encarar as reflexões místico-filosóficas do brasileiro mais festejado no mundo todo fosse problema meu. Não é, muitas outras pessoas já disseram isso, inclusive José Mindlin, o grande  bibliófilo que acabou colocando neste pé a questão:

            -- Paulo Coelho deve ter tido a sorte de conseguir bons tradutores para o inglês, o espanhol, o francês. Tradutores que deram até umas ajeitadas no texto...

            Vai-se saber. O fato é que ele vende muito.

             Quanto a nós, pobres escribas, de insuficiente misticismo e de ruim filosofia, o difícil não é publicar livros. O duro, duríssimo é vendê-los...

 

31/03/2007
(emelauria@uol.com.br)

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