Daqui do alto (II)
Não, nem tente localizar um “Daqui do alto” (I), porque esse artigo saiu há mais de trinta anos e foi incorporado no livro Tempo & Memória, que nasceu em 1986. Lá estava eu no morro do Cristo, vendo a cidade que se desdobrava quase toda à vista atenta. Só não enxergava o Buracão, a Várzea, um pedaço da Vila Pereira, mas eu garanti que a imaginação supria o que não se via. Garanti também que a cidade guardava um sentido de ordem, uma onda de familiaridade e aconchego: ao centro, a colina que se espraiava, confundindo-se à direita e à esquerda com outras colinas. À frente, bem ao longe, uma plataforma verde e alta que um caminho alcançava em voltas. Em recorte no fundo nublado, um lugar aonde provavelmente eu nunca iria. E não fui mesmo. Certamente não será agora que irei. Uma pequena cidade de progresso moroso, onde a igreja ainda era a grande massa física. Hoje não. Um ou outro edifício se ergueu, de certos ângulos a cidade tem um enganador panorama, porém ainda o grande templo impressiona. O grande templo que o povo construiu para concretizar o mais acalentado sonho de um visionário sacerdote – uma catedral com cripta e tudo, elogiada até pelo núncio apostólico que a visitou e quase garantiu a criação da diocese. Quase. Aí entrou uma senhora devotíssima e riquíssima que compensou a falta de uma grande igreja em São João da Boa Vista com a doação de um casarão para palácio episcopal e de uma fazenda de alta produtividade. Resistir quem havia de? Àquela altura de minha ida ao Cristo, São José do Rio Pardo tinha já perdido a ferrovia, carcomida naquela decamilenar enchente de 19 de janeiro de 1977. Perderia muito mais coisas, nas disputas desiguais que teve de travar com cidades vizinhas. Perdeu a duplicação da rodovia (apesar do pedágio em pista simples, coisa incomum). Perdeu empresas importantes, umas incorporadas, outras vendidas, outras transferidas, outras simplesmente reduzidas a nada. Perdeu o que me parece hoje o pior: a universidade pública, que também nos ficou ao alcance da mão. Ah, quantas reuniões no longo namoro de nossa vitoriosa Faculdade de Filosofia com a UNESP! Numa dessas reuniões, Jorge Nagle, então reitor da UNESP, sempre bem assessorado por José Ennio Casalecchi, usou romântica metáfora: aquele namoro, tão promissor, estava no ponto de passar a breve noivado e pronto casamento. De repente, não mais que de repente, acabaram-se os afagos, mudaram-se os mandantes, calaram-se os interlocutores. Os promissores encontros cessaram e o câmpus da UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – acabou batendo asas daqui. Uma perda definitiva. Sim, porque não tenhamos dúvidas. Uma universidade pública, com cursos na maioria diurnos, garantiria à nossa cidade o cumprimento de sua velha vocação: ser o centro regional de educação e de ensino. Neste sentido, nunca será demasiado lembrar o que aqui ocorreu com a criação da nossa primeira escola secundária (1934) e sua solene inauguração a 18 de outubro de 1936, data para sempre gravada na história local. Chamado simplesmente Gymnasio do Estado, tempos depois recebeu o grato nome de nosso grande conterrâneo honorário, Euclides da Cunha. Em 1943, acolheria o então segundo ciclo (colegial) e em 1947 o curso de formação de professores primários. Passou a ser o Colégio Estadual e Escola Normal Euclides da Cunha, por fim guindado ao mais alto posto do ensino público estadual: Instituto de Educação, de tão saudosa memória. Alunos de cidades próximas aqui vieram estudar. Famílias de fora alugaram casas ou reservaram vagas em muitas repúblicas que se multiplicavam para atendimento da crescente clientela. Quanta gente de São Sebastião da Grama, Divinolândia, Itobi, Caconde, Tapiratiba, Vargem Grande do Sul, Guaxupé, Guaranésia, Muzambinho estudou no Euclides! Muitos anos mais tarde, também a Faculdade de Filosofia recebeu alunos de dezenas de cidades, incluídas Piraçununga, Descalvado, Porto Ferreira, Mococa, Casa Branca, Aguaí, Mojiguaçu, Santa Cruz das Palmeiras... A diferença entre a clientela do Euclides e a da Faculdade era que os alunos do primeiro MORAVAM aqui, criaram raízes, alguns até constituíram famílias. Os da FFCL não, porque todos os cursos eram noturnos: os alunos viajavam diariamente de ônibus fretados para suas cidades de origem. Chegavam um pouco atrasados para a primeira aula e saíam um tanto adiantados da última. E assim continua até hoje: a maioria de nossos estudantes de escolas superiores não residem aqui, não participam da vida local. Daí a importância que teria e sempre terá a presença de uma universidade com cursos preferencialmente diurnos. Daqui do alto, muita coisa está igual ao que era há trinta ou mais anos: não os trilhos sem brilho, que foram arrancados com uma pressa de estranhar, mas o rio sim. Deu-me de novo, porque muito raso, a impressão de parado, não fosse uma ou outra cintilação na superfície ou o difuso som das águas descendo rápidas corredeiras. O vento continua a trazer até aqui a ilocalizável massa sonora que lembra a longínqua voz de torcida num hipotético estádio lotado. Ah, estádio lotado. Quando o teremos de novo? O campo do Rio Pardo transformado em parque aquático. O da Associação, sem nenhuma atividade que comova, atraia, impressione multidões, como nos anos quarenta e cinquenta. Parece que regredimos muito no setor. A cidade se espalhou pelas colinas, novos bairros, belas casas, muitos veículos. Pouco aumentou em população, porque foram moradores da zona rural que se mudaram para a urbana, mas a relação carro/habitante da cidade é das mais altas do Brasil. Estacionar no centro? Nem pensar. Todas as tardes e aos sábados de manhã, então... Congestionamento. Quanta igreja! Aparecida. São Roque. São José. Santa Rita. São Benedito. São Cristóvão. São Judas. Hospital. Nossa Senhora de Loreto. Nossa Senhora do Carmo. Rarearam os galos e os quintais. Um cafezal que então avançava quase até o flanco esquerdo da estátua do Cristo, agora desapareceu e cedeu lugar a uma nova cidade, os conjuntos residenciais, onde se concentra densa população com força de eleger quem queira, de traçar os próprios destinos de todos nós. Uma incógnita que pode redundar em bem ou em mal. Tudo depende de como seus moradores entendam do significado, valor e consequências do ato de votar. O velho e lotado cemitério ainda encanta os olhos com a retidão apenas aproximada de ruas azuis. Duas vacas malhadas pastam o verde em meio a pedras cinzentas, morro abaixo. Tal como há mais de trinta anos. Nem se percebe que quase no centro da cidade viceja uma ilha com ponte pênsil, com árvores frondosas, plantas e animais tão bem cuidados. Uma dádiva da natureza. Mal se dá com a existência de outra ilha, rio acima, agora inacessível em seus sombreados de mangueiras e bambuais. Reduzida a mero ponto na paisagem, a cabana, a ponte, o mausoléu, o Recanto Euclidiano, enfim, vale apenas o que provoca no íntimo de cada um. Para tantos, nada, embora sejam símbolos do duradouro, na velha luta de todos os tempos contra o fluido e o efêmero.
31/01/2015 |