Na manhã de 25
A VITÓRIA DO AMOR É bem cedo ainda e a cidade aos poucos supera as suas missas do galo, suas ceias, suas festas inapropriadas pelo mau jeito, suas corridas desabaladas com buzinaços e extemporâneos foguetórios. Pelas manifestações externas, Cristo deve ter renascido em pouquíssimos corações, mas nem por isso as pessoas deixam de se cumprimentar de um modo diferente. Desertas as ruas no trajeto rumo a um dos locais mais convidativos para se andar, para se apreciar tanta árvore, tanta beleza margeando o rio Pardo, bufante e barrento com estas generosas chuvaradas. No momento mesmo de eu sair do carro estacionado na área de lazer, chega forte o som do falatório do casal parado ali pertinho, na mureta da avenida. Ele, miudinho, argumenta como quem pisa sobre ovos, medindo cada palavra, temeroso dos ataques verbais da mulher corpulenta, toda gesticulante, ofendida e senhora de suas razões. Nada sei dos antecedentes do destampatório dela e das desculpas (que me pareceram esfarrapadas) dele, mas posso supor que ele andou bebendo demais, descumprindo horários e compromissos. Não devo ficar ali escutando sorrateiro aquela briga nem sei se de marido e mulher, só sei que de duas pessoas com algum relacionamento amoroso. Saio dali em passos lentos: a uma distância razoavelmente segura, olho para trás e vejo o sujeito magrinho enleando a cintura da ofendida dama de vestido vermelho que, por fim, seduzida por amáveis palavras, vai aceitando o afago do companheiro e parte com ele rumo à ponte metálica. Então posso ficar parado e ainda ver os dois, no meio da ponte, muito agarradinhos, distantes do mundo, retravando o eterno diálogo de Adão e Eva e perfeitamente reconciliados no melhor espírito do Natal.
OS PESCADORES São muitos, acomodados como podem no barranco baixo e por muitas horas protegido do sol direto. Há um ar de felicidade no gesto seguro de um deles cortando as perigosas barbatanas de um bigodudo mandi. Metros após, acompanho o exato momento de glória do sujeito que, munido de vara sofisticada, trava bela e leal luta contra um peixe que não se entrega fácil. De repente, brilha um objeto prateado que se debate. O pescador não tem pressa em retirá-lo da água. Quer primeiro cansá-lo, ter a certeza da fisgada segura. Vai manejando a carretilha, encurtando a linha até trazer para a margem o valente adversário. Recolhe-o com habilidade, retira-lhe o anzol da boca e o coloca num bornal em que outros peixes ainda se remexem na morte breve por falta de água. Este que fisgou agora, é diferente, esguio e comprido – um peixe-espada. Talvez nem se compare o sabor de sua carne com a dos mandis pescados antes, mas o peixe-espada causa no pescador um prazer suplementar: é bonito, digno de ser mostrado como troféu mais raro. Afinal, nem só de pão vive o homem. A estética conta pontos nessas pequenas conquistas.
O CICLISTA FELICÍSSIMO O menino mirradinho deve ter seus treze anos e não pedala a bicicleta. Antes a conduz a pé, respeitosamente, observando seus detalhes e desviando-a da mínima irregularidade da vasta área asfaltada. De vez em quando pára, apalpa o selim, que lhe parece macio, experimenta os freios de mão, vê com prazer os pedais rodando vagarosos e livres. Tenho comigo que aquele é seu primeiro contato com o luzente objeto de seu desejo. Pergunto-lhe: -- Presente de Natal? -- Presente de Natal, mas diferente dos outros. -- Como assim? -- Eu me dei este presente... -- Seus pais não... Ele nem me deixou terminar a pergunta: -- Pai eu não tenho. Minha mãe trabalha muito pra sustentar a casa e nunca que podia me dar um presente desses. Eu é que comprei ele! -- Vai pagando em prestações... -- Que nada... Minha mãe não podia assumir as prestações e eu não tenho idade para isso. Então primeiro juntei o dinheiro de meu trabalho e depois fui comparar os preços das lojas. Consegui numa delas um bom desconto, quarenta reais abaixo do que eu esperava, quando mostrei ao vendedor o macinho das notas, todas direitinhas, contadas e recontadas. -- Beleza. Você vai longe assim. Ele não entendeu a metáfora propiciatória de minha frase e me respondeu concretamente: -- Daqui a pouco subo nela e vou rodando por aí, com cuidado, porque São José não é fácil de se andar. Por um momento fico olhando o menino frágil e decidido que ainda não subiu no presente de Natal, e que, de um modo ou de outro, consciente ou não, tinha driblado uma das pragas que acabam infernizando a vida de tantos brasileiros: comprar à prestação.
O JOGADOR DE BOCHAS Eu já estava quase perto de cumprir minha caminhada regulamentar (a cada dia parece que as mesmas distâncias só aumentam e os três quilômetros duram pequenas eternidades!) quando, do parapeito da Avenida Perimetral, alguém me chama num tom alto, mas respeitoso: -- Senhor, senhor! Pode me informar se hoje funcionará a cancha de bochas? Foi preciso um tempinho para meu cérebro decodificar a mensagem. Nunca eu havia ouvido ninguém, nesta nossa cidade, falar em cancha de bochas. Por aqui se pronuncia botche ou bótia, por influência italiana (bocce), e a palavra significa tanto o jogo quanto suas bolas próprias. Olhei para cima e vi um homem, uma senhora e algumas crianças, com certeza de São Paulo, ou do ABC paulista. Ele me perguntava se na manhã do dia de Natal ficaria à disposição dos jogadores a quadra coberta situada ali pertinho, onde homens de alguma idade se divertem nas tentativas de acertar com três bolas de madeira uma menorzinha, o bolim. É um jogo disputado e barulhento, especialmente porque há uma tábua que amortece o impacto de cada bola arremessada com força.. Respondi-lhe, por palpite, que eu achava que não, porque nenhum funcionário viria abrir o barracão destinado ao jogo. Afinal, era dia de Natal. Ele agradeceu, um tanto desapontado, porque desejava jogar com a mulher e os filhos. Na cabeça dele seria aos domingos e feriados que esses locais de divertimentos públicos deveriam ficar abertos mais tempo. Não tive o que lhe responder, mas eu sabia que nem os sanitários daquela área de lazer costumam ficar disponíveis aos sábados, domingos e feriados. Turismo ainda não é tratado como coisa séria.
Agradeço e retribuo os votos de boas-festas de meus abnegados leitores. A todos, um feliz 2007.
30/12/2006 |