O quintal dos sonhos & outras amenidades

 

ESTÁVAMOS EM ILHABELA, no terceiro ou quarto dia da temporada bem curta.

 

Cumpridos os rituais de reencontro com o mar e com a praia, inauguramos, nós os pacíficos, a boa prática de zanzar daqui para ali, à procura das paisagens tranqüilas e inéditas, do mar remansoso ou agitado, de lugares diferentes para comer, beber ou apenas ver. Foi assim que enveredamos por estradinha de terra, estreita e esburacada, que acabaria dando em cascata generosaconvite certo para um banho em jato de água gelada. Ah, se não fossem as muriçocas que obrigavam tantos daqueles turistas a sentir infindáveis picadas nas carnes de brancuras burocráticas! O paliativo estava em lambuzar o corpo todo com visguenta mistura que tinha de tudo, até óleo diesel. Não resolvia, mas aliviava, como é próprio dos paliativos.

 

Mas foi assim, depois de umas caipirinhas de praxe, satisfeitos da vida, que tomamos o caminho de volta, surpresos ao avistarmos, de repente, verdejante milharal cortado por trilha que apenas ofereceria passagem a pessoas caminhando em fila indiana.

 

Andamos uns duzentos metros até darmos de cara com uma casa de aspecto modesto, mas bem-cuidada. Uma porta simples ao centro, duas janelas azuis, parede caiada de branco. Junto, um canteiro de aspecto selvagem mesmo, com roseiras sem trato, coqueirinhos nativos, flores dessas bem simples, como agrestes plantinhas de praia, margaridinhas amarelas, coisas assim.

 

Atrás da casa, uma árvore com aspecto secular, deitando longos galhos de acolhedora sombra e firmemente assentada entre volumosas pedras. aquilo já daria muitos ângulos para belas fotos, além de alimentar a manifesta vontade de ficarmos por ali um bom tempo, esquecidos das horas e eventuais desculpas de compromissos. Mas não era aquilo. Logo depois das pedras, silencioso, em fase de solidão e repouso, estava o mar. Nada menos que o mar, com momentâneo jeito de imensa piscina. Mas vimos logo pelas marcas na árvore e nas pedras até onde podia chegar aquele mar, o belo mar selvagem cantado com paixão por Vicente de Carvalho.

 

Comentei que provavelmente os moradores da singela casa nem sabiam dar o devido valor àquele quintal, quintal dos sonhos para os poucos que, vencendo na pura intuição o milharal e a estradinha estreita, de repente caíssem surpresos ante aquele recanto perfeito, em que cabia aos homens, quando menos, não cometerem crimes hediondos contra aquela harmoniosa composição de terra, pedras, árvores, mar e céu.

 

NO CCBF, QUE A CIDADE TODA SABE SER o Centro Cultural Batista Folharini, de promissor porvir, discute-se de tudo – de futebol a política, de relembrar um passado matusalêmico, investigar o presente a até lançar breves olhares sobre o futuro. Além do desconforto de ficarem de os confrades, corre-se o risco da súbita entrada de uma senhora distinta ou de uma jovem na flor da idade, desacostumadas ambas das considerações verbais de uns por vezes desbocados freqüentadores. Daí o pedido, agora tornado público, da instalação de espelho retrovisor na parede mais ao fundo, de modo que ninguém seja apanhado de surpresa e obrigado a perder o fio da meada dos relevantes assuntos de interesse público ali tratados todos os dias úteis.

 

A recente contusão do vigoroso lateral direito de três quartos de século, cumpridos, foi compensada pela edificante história que ele contou um dia destes:

 

Mal botou os pés fora de casa, bateu o olho num papel jogado ao chão. Logo percebeu que se tratava de dinheiro, de uma cédula de dez reais. Tomou o achado como um bom prenúncio. Vinte passos depois, deu de cara com um mendigo. Então resolveu praticar sua boa ação diáriaVocê pensa que sabe qual foi, mas está quadradamente enganado.

 

Chamou o pedinte, passou-lhe a nota de dez bem perto dos olhos e guardou-a de novo, sem cuidados nem remorsos:

 

-- Agora você não pode dizer que hoje nem viu a cor do dinheiro!

 

À PORTA DO RESTAURANTE STUFA, nos almoços de sábados e domingos (ou será todo dia?), faz plantão uma pedinte que praticamente não fala, estende a mão e aguarda confiante a caridade alheia.

 

Num sábado destes, o casal  entrou sem pagar o pedágio de costume, o que decepcionou muito a mal-acostumada cobradora de tributos extras.

 

Mas à saída, a mulher do casal por pouco não perdeu o equilíbrio ao descer o degrau quepara a rua.

 

Então a pedinte puxou o homem do casal pela manga da camisa e advertiu:

 

-- É o que acontece. Se não me ajudam com uma esmola, Deus castiga...

 

Ele nem pensou duas vezes, tirou do bolso uma nota de pequeno valor (não o mísero real costumeiro) e tratou logo de quitar o débito, isolando a praga.

 

NA SAUNA, O CARECA DE PEITO CABELUDO contou a apreciada história (o pessoal é exigente, não ri à toa) que  garantiu ter acontecido com ele mesmo:

 

Nem bem chegou, ao fim de um dia de trabalho, as filhas vieram com a novidade:

 

-- Papai, nós temos duas notícias ligadas pra lhe dar: uma ruim e outra boa. Qual delas o Sr. quer ouvir primeiro?

 

-- Sei , qualquer uma...

 

-- Assim não vale. A ruim ou a boa?

 

-- Está bom. Que seja a boa...

 

-- Ficou pronto o inventário da vovó e o Sr. ganhou oito terrenos. Oito, papai!

 

-- Que bom, minhas filhas. Que bom... Mas qual a notícia ruim que pode estar ligada ao ganho de oito terrenos?

 

-- Puseram ali em cima da escrivaninha. Veja .

 

E ele foi: estavam à sua espera oito carnês do pagamento do imposto predial e territorial urbano, o IPTU...   

 

30/10/2004
(emelauria@uol.com.br)

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