Zelinha, Neusa  – tristes histórias

 
A brancura do incenso.

 

Já não tenho tempo nem necessidade de inventar histórias tristes, mas julgo de meu dever, por lealdade à parte de meu seleto leitorado que anda evitando casos chorosos: estes de hoje são  tristes, não de uma tristeza lancinante, mas bem tristes.

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Estava-se num sábado à tarde na redação do único semanário da cidade (isso já faz muito tempo, o jornal saía domingo cedo), todo o mundo trabalhando com afinco no seu setor, quando o cronista social pergunta em voz alta e não especificamente a ninguém:

- Referindo-me a uma pessoa de quinze anos, devo escrever menina ou senhorita?

Cada um interrompeu o que fazia e todos se entreolharam, sem ter resposta pronta.

Até que um arriscou:

- Depende do assunto...

- O assunto é grave, definitivo: ela morreu, explicou com inesperada concisão o festejado cronista.

Não era de família com grande relacionamento social a morta precoce, que atendia pelo carinhoso diminutivo Zelinha, provavelmente de Zélia, e morria aos quinze anos – motivo mais que suficiente para causar pena e provocar pensamentos sérios, mesmo sobre a grave questão de como localizá-la no universo: menina ou senhorita.

E agora, bem mais de meio século decorrido, não sei o que o jornal preferiu, mas ainda penso de vez em quando na Zelinha que não conheci e numa visita que eu cogitei fazer aos pais dela, para me convencer de que tratamento ela de fato merecia, morrendo sem mais nem menos na flor da idade, entreaberto botão, entrefechada rosa, tal qual a menina e moça do velho Machado.

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Não fiz jamais a tal visita, nem sabia onde moravam, mas imaginei que um dia, por acaso, eu tivesse vindo a conhecer os pais dela. Ele, um senhor de uns quarenta e vários anos, moreno, barba por fazer, bigodes descuidados, a modesta roupa bem que precisando de uma repassada; ela, às portas dos quarenta, vagamente loira, olhos parados, a cara triste, luto na alma, com jeito de religiosa e meio espírita depois da morte da filha. Eu lhes contaria que me lembrava bem da notícia de Zelinha. Até lhes narraria com detalhes inventados nossa conversa na redação e a dúvida que assaltou a todos nós: menina ou senhorita?

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O pai se fechou em silêncio, mas a mãe se agarrou àquela rara oportunidade de falar da filha, sem que ninguém a interrompesse ou censurasse:

- Olhe, as duas palavras lhe caberiam. Ela guardava delicadezas de menina, ao mesmo tempo em que se dava bem com a situação de senhorita.

Prova dessa dualidade de comportamentos estava clara para a mãe nas duas fotos que buscou na surrada carteira de couro que carregava.

- Veja bem esta: ela estava com uns dez anos, era uma menina, mas já deixava antever os belos traços da senhorita que mal despontava. Nesta outra, com ela aos treze para quatorze, ainda o senhor pode ver os vestígios da menina que aos poucos, com gentileza até, a senhorita ia apagando. Não é verdade, Alberto?

Alberto, o pai e marido, como que acordou em sobressalto, porque não estava acompanhando as acrobacias mentais que a mulher vinha praticando para não se desgarrar nem da menina que se desmanchava nem da senhorita que ia surgindo na plenitude da beleza e da perfeição, que só uma boa mãe tem como enxergar e manter na memória.

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Estará ainda vivo o senhor Alberto e sua mulher, cujo nome não consegui sequer inventar? Muito difícil que vivam. E em caso positivo, um estará na casa dos noventa e a outra já superando os oitenta. Tenho certeza de que o senhor Alfredo, ao longo de toda a vida, cada dia foi pensando menos na filha tão precocemente morta. Já a mulher, não. Deve ter guardado pela vida toda a gentil alternativa de não saber qual faceta da filha mais a emocionava - a da menina ou a da senhorita.

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Também em minha casa se deu a morte de pessoa adolescente, na flor dos treze anos. Era minha irmã e chamava-se Neusa. Tenho com ela uma foto tirada por fotógrafo profissional, o Sr. Ferreira, em nossa pequena casa da Rua José Teodoro, esquina da Rua do Paraíso. Eu estava com quase cinco anos e vestia uma roupa muito caprichada, calças curtas, suspensórios, meias de colegial e uns sapatos por mim mesmo engraxados. Na camisa de um tecido que lembrava ou era seda, meu nome estava bordado de forma que as letras primeiro cresciam e depois diminuíam. Assim:

  

Neusa, que nem completava um ano, estava lindíssima, sentada numa mesinha a meu lado, eu em pé, todo lampeiro, apoiando-a. Roupa vaporosa, cabelos cacheados, um rosto de perfeita beleza, uns olhos brilhantes e espertos, que revejo em outras mulheres da família.

 Poucos meses depois, ela cai doente, mistura de paralisia infantil com febre altíssima, acidente vascular-cerebral  e jamais se recupera de todo. Foi um baque familiar.

 Meu pai gastou com ela o que tinha e o que não tinha. Levou-a a um médico famosíssimo da Rua Marconi, em São Paulo, que foi de um realismo cruel:

- O caso dela é incurável. Ela sofrerá de acessos pela vida toda e muito provavelmente morrerá ao entrar na adolescência.

 Que diagnóstico fechado! Neusa tinha dificuldade de usar a mão esquerda e jamais pôde frequentar escola. Morreu antes dos quatorze.

Meu pai, à semelhança do Sr. Alberto, pai da Zelinha do começo destas histórias tristes, fechou-se na sua mágoa e jamais voltou a falar da filha morta. Minha mãe, não. Assimilou melhor a grande perda e até morrer, aos noventa e nove, sessenta anos depois da filha, falava nela com carinho e naturalidade, como se viva fosse.

Maria Thereza, a outra irmã, nasceu quando Neusa já estava tomada pelas doenças e com as limitações da vida bem traçadas. Deve ter sentido e bem aceito o inevitável desvelo do pai e da mãe pela irmã mais vulnerável às durezas da vida.

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Neusa, meu pai e minha mãe descansam em paz num túmulo familiar, na primeira rua à direita de quem entra no cemitério.

 

30/08/2014
emelauria@uol.com.br

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