Puxando pela memória
Aí eu contei ao eventual companheiro de sauna que conhecera o avô dele, alfaiate numa velha casa da Várzea, acho que de pau-a-pique, demolida há mais de cinqüenta anos. Ele quis saber mais, não só do avô, mas da Várzea também. Diga-se desde logo que tanto faz pronunciar-se várzea ou vargem, o sentido é o mesmo: planície sujeita a inundação. Nossa Várzea é bem isso, através dos tempos seus moradores e muitos curiosos vindos de outros lugares da cidade acompanharam com preocupação ou espírito de novidade a subida de nível das águas geralmente calmas de dois córregos – um vindo lá do Bonsucesso e outro nascendo ali nas proximidades do Buracão. Houve algumas enchentes das brabas, nenhuma que se comparasse à do dia 19 de janeiro de 1977. A modesta alfaiataria ficava num casarão que ocupava o terreno onde hoje está a casa de Sérgio Gumercindo Della Torre, meu companheiro de escola, no “Cândido Rodrigues”, isso faz tempo à beça. As modificações sofridas pela Várzea ao longo dos quase setenta anos que minha família aqui reside, foram graduais e constantes: Sumiram as casas dos praticantes de diversas profissões, daquelas que passavam de pai para filho, para neto, para bisneto. Não sei se me lembrarei de todas. Oficinas de consertos de calçados havia três – Sernaglia, Guirro e Crudi; duas barbearias, empórios (as “vendas”), ao menos duas – Vigorito e Della Torre; açougues, dois, sendo um especializado em produtos suínos; a Padaria Alemã, a selaria da família Marin, que fabricava ou consertava tudo quanto fosse artefato de couro, como arreios, malas, cintas, bolas de futebol... A ferraria dos Flamínios, reparando carroças, charretes, arados e ferrando animais. A colchoaria do Bilotta. Máquina de beneficiar arroz, armazém de café também havia. E atividades incomuns? Um senhor, muito elegante, sempre de paletó e gravata, com um talãozinho e papel-carbono, exercia com dignidade o ofício de cambista do jogo-do-bicho. Uma estranha mulher, de feições duras, fala arrevesada, cabelos negríssimos e oleosos, era tiradeira de sorte. (Diziam que mais, muito mais...) Um encantador de serpentes que quase morreu envenenado e acabou cego. Mas a Várzea dos anos quarenta era um domínio de moleques. Atraía-os o exagero de dois córregos com muita água, muito peixe e pouca poluição, os amplos espaços, os esconderijos, a certeza de se encontrar sempre alguém disposto a brincar. Ia-se à escola, de preferência pela manhã, faziam-se mal e mal as lições, e pronto: o resto era tempo livre, sem aula de computação, de inglês, de balé, sem ida à academia, sem horário de reforço, e sabe-se lá que mais. A quase imutável pracinha, então de chão batido, era o começo do jardinzinho, com as enfileiradas árvores (oitis, parece), que forneciam material para os duelos dos canudinhos assoprados na cara dos inimigos. Havia uns bancos de cimento imitando impossíveis troncos de árvores; havia um bebedouro de cimento para animais; havia os refúgios no labirinto protegido por cedrinhos altos, tendo ao centro um transformador enorme, a gabina. A Várzea começava lá no alto, com o casarão decrépito da Padaria Alemã (estava escrito Alleman), “movida a electricidade”, que por causa da guerra foi obrigada a chamar-se “Paulista”. Por razões meramente afetivas, era também considerada integrante da Várzea a velha casa (onde hoje está a residência da família Ribeiro de Lima) do Carlo e da Carlota, com suas delícias de batata-roxa, abóbora e coco, algumas vezes compradas por uns tostões, e outras vezes apenas furtadas em manobra facílima: alguém desviava a atenção dos velhotes, enquanto um ou dois do bandinho surripiavam os doces, expostos num precário balcão. Coisa de sentir-se tardio remorso. O ponto de melhor definição visual da Várzea era um caramanchão defronte à casa de Galileu Rondinelli (a atual clínica do Dr. Ernani Vasconcellos). Nele vicejava uma eterna trepadeira de cores vivíssimas e, em desnível, uns tanques eternamente secos. O local foi modificado, perdendo muito de seus encantos. Rigorosamente considerada, só a parte baixa da Praça Prudente de Morais seria a Várzea, que contudo avançava pelo começo da Rua Silva Jardim, apossava-se do beco do João Della Torre (hoje a pequena rua que tem este nome de família), enveredava firme pela Siqueira Campos, até se confundir, sem limites claros, com o Bonsucesso, com a Vila Pereira. Olhando em cheio para a Silva Jardim, alteava o arvão, majestoso pau-d’alho (meu amigo Hélio Frigo me garante de pés juntos que era um açoita-cavalos) cheio de histórias e cicatrizes, em trágico dia posto abaixo sem mais nem menos, para a geral revolta, sob o pretexto de que a praça toda seria modificada. Ainda hoje, a preservação de velhas árvores não é sentimento que se imponha com facilidade. Em muitos países, se elas apresentam ferimentos, tratam delas; se ameaçam cair, arrimam-na de mil modos. Cortar uma árvore nativa – só em situações excepcionais, esgotados todos os recursos para a sua manutenção. O inverso dessa desejável atitude preservacionista é certa indisposição contra a presença de imponentes árvores, uma espécie de necessidade predatória chama-se dendroclastia. Nunca será demasiado lembrar que o mais doloroso ato praticado por dendroclastas nesta nossa cidade foi o arrasamento do incomparável Jardim do Artese, de saudosa memória. Muitas das perdas arquitetônicas sofridas pela cidade tiveram essa esfarrapada justificativa: construir-se uma novidade em seu lugar, como se não houvesse espaços disponíveis em todo o centro urbano. Por isso, perdemos a velha Matriz, belíssimo projeto do escritório de Ramos de Azevedo; por isso foi demolido o incomparável chalé da família Oliveiros Pinheiro; por isso ainda veio abaixo o sobradão da família Soares... Volto ao arvão, a sede das brincadeiras noturnas de muitas levas de meninos que, sentados em suas raízes, lá ficavam ou então organizavam brincadeiras que, nestes tempos de jogos eletrônicos, ninguém sequer sabe o que viriam a ser: turma achar outra, carniça (que chamávamos “uma na mula”). Gostava-se de uma brincadeira talvez sem nome, porém muito filosófica e de larga aplicação nos reveses que a vida pode oferecer no mundo real dos adultos: começava-se com a fala de um líder dizendo: “Fui passando pelo quartel e dei por falta do sargento”. Então o que antes havia sido designado sargento, rebatia lá do seu posto, ou seja, sentado no meio-fio da sarjeta: “O sargento não falta!” “Quem falta?” – inquiria o líder. Uma demora ou um vacilo na resposta e o faltoso, ainda que general ou marechal, era rebaixado a soldado raso, num processo sumário e sem apelação, indo postar-se, entre vaias, no fim da escala hierárquica... “Uma na mula”, ou a tal carniça, tinha seu tanto de maldades e ironias. Quem nunca brincou disso nem pode imaginar o sentido de frases como soltar peru do galinheiro, desarmar soldado, tirar feijão da cuia, abrir a torneirinha, tudo às custas de vingativo sofrimento de quem estivesse na “cela”, isto é, imóvel, tronco recurvado, mãos fortemente agarradas à altura dos joelhos, e à mercê dos outros. Mas a capital diurna da Várzea sempre foi o campo do Rio Pardo Futebol Clube. Antes da remodelação geral de 1943, quando se construiu a arquibancada e se plantou grama nova, o campo até que merecia o irônico apelido de “pastinho”, porque sempre aparadinho e enriquecido simultaneamente por um burro preto (na economia verbal: o burro do Torquato), pertencente ao zelador Torquato Colli. São inesquecíveis as pontiagudas gradinhas de madeira que circundavam o campo todo e muito pouco protegiam. Em alguns jogos houve assistentes que arrancaram algumas daquelas ripas, transformadas em poderosas armas de ataque e defesa. Tenho uma foto em que um grupo de meninos plantava..... Torquato Colli teve interessante participação na reconstrução da ponte de Euclides... A meninada, mesmo nos jogos importantes, costumava... A Banda Lira Rio-Pardense, com Caiuby Jordão vermelho, de pescoço grosso... Puxa! O que não falta é assunto. Mas chega por hoje.
30/08/2008
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