TEMPO DE MURICI

 

Euclides da Cunha acolhe em Os sertões este provérbio de largo uso no Nordeste: É tempo de murici, cada um cuide de si. E comenta seu emprego pelo infeliz coronel Tamarindo, ao dar às tropas sob seu comando em Canudos plena autorização de sair em debandada, fugindo daqueles seguidores de Antônio Conselheiro que espalharam o pânico entre os soldados para lá enviados pela República, em luta inglória. O próprio Tamarindo não conseguiu cuidar de si mesmo: seu corpo, empalado, erguido num galho seco de angico, parecia um manequim terrivelmente lúgubre, na forte expressão euclidiana. Mais um higrômetro singular.

 

 

RIO, 2016

Se você for incapaz de se desligar dos meios de comunicação visual, oral ou escrita, entrará agora numa fase que requererá muita paciência e superior boa vontade. Pelo que já se tem falado dos jogos olímpicos e pelo que vêm anunciando jornais, revistas, rádios e tevês, estamos e estaremos submetidos a duras provas de resistência física e de capacidade de ver/ouvir a mesma coisa dez, vinte, trinta vezes. Além de, sob o comando de Galvão Bueno, colocarmos à prova se somos patriotas ou não, se vibramos ou não com os feitos de nossos bravos futebolistas, voleibolistas, basquetistas, iatistas, pugilistas, esgrimistas, halterofilistas e uma infinidade de outros istas, de cuja existência não tínhamos sequer noção.

Não fui consultado, mas se o tivesse sido, estaria junto com metade dos entrevistados do Brasil todo que se declararam temerosos quanto à realização desses jogos olímpicos em nosso país, às voltas com a mais grave crise política, econômica, política, social de toda a sua história. Isso sem se falar no que poderá surgir de falcatruas, sabendo-se quais foram as construtoras que cuidaram das instalações de uso de milhares de atletas participantes. Tudo corre o permanente risco de ruir, estourar, desatarraxar, queimar,  arrebentar, entupir, vazar, derreter, pifar, entortar, ceder, aluir, emperrar, vergar, afrouxar, trincar, desprender, rachar...

Lembrai-vos da Vila Olímpica - logo advertirá alguém. Ou então: Não vos esqueçais da bronca dada pela chefa da delegação australiana. E do papelão vivido pelo prefeito do Rio de Janeiro em sua caricata resposta.

 

A VOZ DO BRASIL

E a olimpíada já produz seu primeiro bom fruto: entre os dias 5 e 18 de agosto as emissoras de rádio de todo o Brasil ficam desobrigadas de transmitir o noticioso oficial no horário das 19:30. Podem fazê-lo à hora que bem entenderem. Essa voz do Brasil é triste reminiscência dos tempos de Getúlio Vargas, criador da hora do Brasil, que ocupava o filé das 20 às 21 horas.

O bom, mesmo, será acabar tanto com a obrigatoriedade de retransmissão quanto com o próprio e bajulador programa, dizem que apreciadíssimo por parlamentares que, através dele, mandam seus recadinhos para o distante eleitorado.

 

UM POVO MONARQUISTA

Manuel Antônio de Almeida, o médico que se tornou escritor de renome por causa de seu romance picaresco escrito aos 21 anos de idade - Memórias de um sargento de milícias  (1852), começa o livro com esta frase: Era no tempo do rei... Pelo que a maioria das pessoas deveria saber, se é que ainda se sabe algo sobre a história do Brasil, nosso país nunca teve um rei, porque Pedro I, proclamando a Independência em 1822, tomou para si e mais tarde legou a seu filho xará o título mais pomposo de “imperador”.

Mas o Brasil teve um rei – D. João VI, que em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte, transmigrou com toda a corte portuguesa para o Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1821. Primeiro foi regente do reino unido de Portugal, Brasil e Algarves, enquanto sua mãe, a rainha D. Maria I, cada vez mais se afundava nas sombras da loucura, até que morreu em 1816. Isso quer dizer que, a rigor, o tempo do rei a que faz referência Manuel Antônio de Almeida,  foi de 1816 a 1821. Mas os brasileiros são chegadinhos a ter rei: rei do baião, rei do futebol. Rei da cocada preta, rei Momo, rei Roberto Carlos.

A olimpíada com certeza coroará muitos reis e rainhas, nacionais ou não.

 

POBRE BARÃO

Está cada vez mais inquieto no túmulo o Barão de Coubertin, criador dos jogos olímpicos da era moderna (1896). Ele imaginou uma salutar reunião de esportistas amadores, alheios ao lucro, ao racismo, à política, à propaganda comercial. E deu no que deu. Certamente ninguém mais é amador, mas o pior é que quase ninguém deixa de usar substâncias que estimulam o desempenho atlético. Claro que há os exagerados, como os russos. Cerca de um terço de todos os seus quatrocentos inscritos corre o risco de eliminação da olimpíada por dopping. O governo de Vladimir Putin tomou sérias providências e nomeou como chefe de apuração das irregularidades um sujeito de sobrenome promissor: ORLOV, parecidíssimo com Orloff, nome da vodca de alto consumo mundial.  

 

30/07/2016
emelauria@uol.com.br

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