Sabedoria e prudência

 
Velhas árvores da ilha

 

Não é de hoje que nutro particular admiração por um contista norte-americano, William Sidney Porter,  que se fez conhecer e admirar com o pseudônimo de O. Henry (1862-1910). Que vida a dele! Filho de médico, perdeu a mãe aos três anos. Leitor ávido, aos quinze emigrou da Carolina do Norte para o Texas, onde se dedicou a mil tarefas. Fundou uma revista humorística chamada (acreditem!) The Rolling Stone (“A pedra que rola”...).

Sua vida aventureira levou-o a ser acusado de ter dado desfalque num banco, a fugir para a América Central, a cumprir cinco anos de penitenciária em  Columbus, Ohio. De Ohio Penitentiary teria tirado o  seu pseudônimo. Libertado antes de ter cumprido todo o tempo de pena, estabeleceu-se em Nova York e firmou-se como contista, cujos enredos eram cheios de compreensão e misericórdia para com os desventurados, criminosos e sofredores de todo o tipo.

Meu primeiro contato com seus textos deu-se há muito tempo, como resultado da leitura de um deles, “A Última Folha”,  selecionado pela Editora Cultrix  na bela série  “Maravilhas do Conto” (1957). No volume dedicado aos norte-americanos, lá estava O.Henry, de que não me esqueci neste mais de meio século. Hoje, quando tive a intenção de relê-lo para compor este meu artigo, onde estavam as “Maravilhas do Conto Norte-Americano”? Simplesmente não estavam. Encontrei italianos, franceses, ingleses, espanhóis, mas norte-americanos, não. Então me lembrei, mais uma vez, de um velho conselho que não tenho seguido com a necessária firmeza: Livro só se empresta para amigo, e amigo não pede livro emprestado... Isso sem se contar com a possibilidade de livros saírem por aí, à revelia.

Tento resumir o enredo do conto, como em todos de O. Henry cheio de solidariedade humana. Era na enfermaria de um hospital de Nova York e o inverno se intensificava. Dois doentes travaram amizade enquanto olhavam a estrita paisagem que lhes chegava pela janela, um pesado muro de tijolos vermelhos, em que lutava pela sobrevivência uma espécie de hera. Dia após dia a temperatura caía e aumentava a força do vento gelado. A cada dia, algumas folhas da trepadeira eram arrancadas do muro. Um dos doentes revelou ao companheiro sua premonição:

- Eu morrerei quando o vento arrancar a última folha da trepadeira.

E assim, a cada rajada, mais folhas caíam.

Na véspera do Natal,  em que o estado do doente cheio de premonições se agravara particularmente, a nevasca recrudesceu, acompanhada pelo assobio do vento. Parecia chegada a hora de ele morrer. Mas a tempestade amainou, o dia amanheceu e lá estava no muro uma só folha, que por milagre havia resistido ao ímpeto dos elementos conjugados. O doente como que recuperou as forças depois de tão dura prova e acabou, dias depois, saindo com vida do hospital. O que ele nunca soube é que seu companheiro de quarto havia conseguido que um dos enfermeiros fixasse no muro aquela simbólica folha, que só assim resistira à neve e ao vento...

“O Presente dos Magos”, geralmente considerado o melhor conto de O. Henry, está em Contos de Natal, de vários autores, Editora Quadrante, São Paulo, 2005.

Os personagens são, para variar, duas pessoas muito pobres que se amam de verdade. Por apelidos chamavam-se Della e Jim. O apartamento não era propriamente um antro de mendigos, mas pouco faltava para que a polícia o pudesse  classificar como tal.

Transcrevo:

“Della terminou de chorar e retocou o rosto com pó de arroz. Parou junto da janela e observou tristemente um gato cinzento a caminhar sobre uma cerca cinzenta num quintal cinzento.”

Amanhã seria Natal, e ela só tinha uma quantia ínfima de dinheiro, pouco mais de um dólar,  para comprar um presente para Jim. Poupara o que lhe fora possível ao longo dos meses, mas as despesas  tinham sido maiores do que calculara.

Havia um espelho de parede entre as janelas do quarto. Della deteve-se junto dele... Os seus olhos brilhavam luminosamente, mas vinte segundos depois o rosto perdera toda a cor. Soltou rápido  o cabelo e deixou-o cair em toda a sua extensão.

Havia duas coisas de que aquele casal se orgulhava enormemente. Uma era o relógio de ouro de Jim, que tinha pertencido ao pai e ao avô. A outra era o cabelo de Della.

“Se a rainha de Sabá morasse no apartamento do outro lado do pátio, algum dia Della teria soltado sua cabeleira para secar junto à janela, só para fazer as joias e adornos de Sua Majestade empalidecerem de vergonha. Se o rei Salomão fosse o porteiro e todos os seus tesouros estivessem empilhados no porão, Jim teria puxado o relógio todas as vezes que passasse pela portaria, só para vê-lo arrancar-se as barbas de inveja”.

Disposta a conseguir dinheiro para comprar um presente ao marido, Della vestiu o casaco marrom e pôs o velho chapéu marrom. Saiu para a rua.  Leu o anúncio: “Mme. Sofronie. Perucas de todos os tipos”.

- Quer comprar meu cabelo?

- Compro cabelo. Tire o chapéu e vamos ver que cara tem.

A cascata morena se desatou.

- Vinte dólares.  (Era um dinheirão, levando-se em conta que esta história tem mais de cem anos. Lá também a inflação é fato.)

- Passe-os logo.

Saiu à procura do presente para Jim. Encantou-a uma corrente de platina, simples e casta no desenho. Era digna do relógio do marido.

Em casa, no longo exame ao espelho, Della pôs-se a reparar os estragos causados pela generosidade unida ao amor. “O que é sempre uma tarefa tremenda – caros amigos –, uma tarefa colossal”, garante O. Henry.

Della explica ao marido por que cortara o cabelo. Ele, que não quer magoá-la,  sente-se um completo tolo.

- Não é uma beleza esta corrente, Jim? Dê-me seu relógio. Quero ver como ela fica nele.

- Della, vendi o relógio para lhe comprar o jogo de pentes para cabelos que você namorou tão longamente numa loja da Broadway... Vamos guardar os nossos presentes de Natal e deixá-los de lado por algum tempo. São bons demais para os usarmos por agora. Que tal pôr as costeletas no fogo?

 

Conclusão de O. Henry:

“Os Reis Magos, como o leitor sabe, eram homens sábios e prudentes, homens maravilhosamente prudentes, que trouxeram presentes ao Menino deitado no presépio. Como eram prudentes, os seus presentes sem dúvida foram prudentes, e talvez até pudessem ser trocados se estivessem repetidos. Contei-lhes aqui, desajeitadamente, a crônica sem grandeza de duas crianças tolas que moravam em um apartamento mobiliado e sacrificaram, uma pela outra, da maneira menos prudente possível, os maiores tesouros que tinham em casa. Mas numa última palavra destinada aos sábios e prudentes do nosso tempo, seja dito que, de todos os que dão presentes, esses dois jovens foram os mais sábios. De todos os que dão e recebem presentes, os que são como eles são os mais sábios. Sempre e em toda a parte são os mais sábios. São os Reis Magos.”

 

 

30/05/2015
emelauria@uol.com.br

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