Do Calidoscópio (II)
REFLEXÃO NA POSIÇÃO 8 (19-3-72) Admira-se e teme-se a tecnologia, mas pouco se alerta contra sua odiosa capacidade de maquinizar os homens. Acostuma-se logo às inovações de ordem material; e em grau elevadíssimo avulta a contristadora impossibilidade de que o conforto – palavra mágica de nossos dias – atinja a grande massa ainda em nível de sobrevivência e que não mais ignora existir bem próximo a si, mas fora de sua aquisição, um mundo de prazer, de comodidade, originário do consumo altamente incentivado. Comentário de atualização: Foi isso que mudou inteiramente a face dos sonhos das pessoas: qualquer um pôde almejar quase tudo que se pudesse comprar a prazo, mesmo que pagando mais que o dobro com os juros embutidos. E isso explica até a crise atual, originária dos Estados Unidos, com pessoas contraindo empréstimos impagáveis, usando e abusando dos cartões de crédito.
REMINISCÊNCIA ESCOLAR NA POSIÇÃO 9 (26-3-72) A redação de preferência ou era uma carta ou uma interpretação de provérbio. Na 3.ª série, prova parcial de outubro, peso 4, o tema sorteado foi: “Em terra de cegos quem tem um olho é rei”. João Estêvão até estranhou o assunto, de tão fácil; escreveu com desembaraço. Saiu confiante na reabilitação de que andava bem necessitado. Seu otimismo aumentou ainda mais quando o professor, avesso a intimidades, ao primeiro dia de aulas após as provas quis conhecê-lo melhor. E fez questão de ler toda a redação para a turma. João Estêvão, inspiradíssimo, não se contentara em dissertar sobre o assunto proposto. Organizara, isto, sim, o que em música se chama “variações a respeito de um tema”. “Em terra de cegos quem tem um olho é rei” – abrira o professor. O João Estêvão replicou em uma folha inteira de glosas felizes: “Na terra dos mudos, gago é espíquer”; “no quintal de galinhas chocas, a galinha que bota um ovo é rainha”; “no hospital de paralíticos, o manquitola é enfermeiro”; etc. Terminada a leitura, o professor cumprimentou o autor e anunciou-lhe em primeira mão a nota: UM.
Comentário de atualização: Esse incidente verídico envolveu o Prof. Hersílio Ângelo e João Estevam Ribeiro Nogueira, o Zada, que aqui está vivo e são para confirmá-lo e relatá-lo pela milésima vez. José Carneiro de Araújo Filho, também vivinho da silva, pode falar com conhecimento de causa daquela nossa famosa turma de 1945. Ele resumiu tudo numa frase lapidar: - Nossa 3.ª série deu alguns doutores e diversos presidiários!
UMA GRAVE PERGUNTA QUE FAÇO NA POSIÇÃO 11 (9-4-72) Escrevo difícil? – repito-me a pergunta para me localizar e justificar. De propósito não. Talvez por inconsciência. Afinal, “a luta pela expressão”, a “sobrevivência do indizível”, como dizem os teóricos, não nasceram agora. Também eu ando à cata da palavra que me pareça exata, adequada ao pensamento que desejo externar. Sei, em suma, que num sentido rigoroso não existem sinônimos, visto que o termo conserva intransferível individualidade de significação.
Comentário de atualização: Até hoje sou acusado de escrever difícil. Procuro ser exato e não cair nas teias do comodismo fácil que uma parcela dos leitores bem desejaria. Leitores com leseira mental. Que posso fazer? Não é possível agradar a todos. Espero, ao menos, agradar aos bons de leitura e compreensão.
TRECHO DE CARTA DE LEITOR, NA POSIÇÃO 14 (7—5-72) Gostaria que se escrevesse um artigo, não propriamente sobre a falecida ***, mas sobre as mulheres que viveram como ela – mesma estirpe, mesma alma, mesmo coração, que passaram pela vida pensando somente no bem-estar dos outros, em dar-se, inconscientes de si mesmas, como se elas próprias não existissem. Seria uma homenagem a todas as mulheres que souberam sentir e viver, sem filosofia nem falatório, o verdadeiro sentido das palavras humanidade,humildade, bondade, sem alarde de grandeza; mulheres que, vivendo na sombra, longe das fulgurações mundanas, irradiaram bondade e luz, sem nada pedir, sem a menor exigência, visto ser esse comportamento natural das almas puras. Comentário de atualização: Nunca escrevi tal artigo, nem me ocorre quem possa ter sido a tal ***. Não lembra Teresa de Calcutá, ou Irmã Dulce, aquela freira baiana, ou ainda uma tia que todos nós tivemos, que permaneceu solteirona só para criar seus oito irmãos? Ela escondeu-se tanto, que acabou na vala comum do perfeito esquecimento...
O QUE DISSERAM OS IMORTAIS (18-6-72) Comento na posição 20 um importante lançamento editorial chamado “Os Imortais da Literatura”, conjunto de cinquenta volumes de grandes autores internacionais. Em cada um deles há uma frase-síntese do pensamento do escritor, entre as quais:
POESIA DE CLASSE NA POSIÇÃO 21 (25 -6-72) O objeto de análise é o texto “Alfabetização 2000”, extraído do livro Janela de apartamento, da excelente poetisa Ilka Brunhilde Laurito – uma das permanentes admirações de minha mulher Marina. As duas conviveram por bom tempo num hotel de Itatiba, cidade onde lecionavam lá por 1955/56/57. Depois da transcrição integral do texto, que faz do então longínquo ano de 2000 o símbolo de um mundo completamente diverso, com alunos-robôs, há um poético comentário assinado por quatro excelentes alunas do 4.º Ano de Educação, do Instituto Euclides da Cunha: Ana Teresa Campos Frigo, Liliana Magalhães Nogueira, Maria da Glória João e Umbelina Maria da Graça Oliveira. Devem ter merecido de mim um dez com louvor. A vida de cada uma delas confirmou os respectivos talentos. Notáveis tempos de notáveis alunos.
30/05/2009
|