ÁRVORE SEM RAÍZES

Houve um tempo, o mais trabalhoso já vivido, em que eu até sonhava vendo-me livre das quarenta aulas semanais de Português em escola pública estadual.

Na verdade, não trabalhava só essas quarenta horas; havia ainda a Faculdade de Filosofia e um colégio particular, o Grafos, de luminosa memória. Mas liberar-me da carga mais pesada e cada vez menos gratificante  significava conquista de alta valia quanto ao melhor domínio dos dias e dos horários apertados.

E assim foi. Aposentei-me  como professor da rede pública em 1983 (!), após trinta e três anos de efetivo exercício e senti o esperado alívio;cansado de levantar todos os dias às seis horas, a semana toda. Cansado de mal poder respirar ao fim da tarde, antes de ir para o cumprimento do turno da noite; cansado de sacrificar os finais de semana pesquisando coisas, com prejuízo para a vida social e familiar. Ficaram poucas aulas, tanto de dia quanto de noite. Com as tardes livres, cheguei a comprar um maçudo cadernão de quinhentas folhas que pretendia logo encher com estudos e escritos.

Em boa parte fiz isso, além da redescoberta do especial prazer de ficar com poucas aulas e de poder prepará-las com ânimo e afinco. Escrevi muito, publiquei livros e a vida foi tomando outros rumos. Vieram oito anos de direção da Faculdade, quatro de aulas na Faculdade de Direito de São João da Boa Vista, a convite do bom amigo e conterrâneo Celso Ribeiro da Silva, então diretor. De qualquer modo, o rigor dos horários não lembrava nem de longe os árduos tempos de aulas no ensino secundário.

Ao se aproximar em 2000 o final de meu mandato como diretor da Faculdade de Filosofia, fiz intensa preparação interior para me acostumar à idéia de outro acontecimento inexorável – a aposentadoria compulsória aos setenta anos. Engano ledo e cego, conforme a bela frase camoniana, porque em meados de 2001, eu ainda no exercício do magistério na FFCL, Melânia Dalla Torre e Cármen Trovatto Maschietto me surpreenderam inteiramente com o convite de eu lecionar na UNIP, que iniciaria suas atividades. Meu lado acomodado (ou muito cansado, com mais de cinqüenta anos de atividades em educação) me aconselhou um não, mas o lado que se considerava ainda capaz de trabalhar com prazer e empenho, acabou vencendo. No curso de Direito, escolhi (vejam que privilégio!) ministrar Linguagem Jurídica, disciplina que mistura Português, Direito, Latim e outros ingredientes mais. Em Propaganda e Marketing fiquei com Português. Foi uma experiência e tanto. Para dar conta de apenas quatro aulas semanais, gastava em casa outras dez horas de preparação e digitação.

Em 2002, era eu responsável por oito aulas semanais – seis da mesma Linguagem Jurídica e duas de Latim, no recém-aberto curso de Letras.

- LATIM?! – Quantos não estranharam minha escolha, especialmente sabendo que havia outras disciplinas à disposição.

- Latim...

E agora entro na verdadeira motivação deste relato muito pessoal e de interesse mais que restrito.

Ao aceitar o encargo de me responsabilizar pelo ensino desta matéria aparentemente em rota de colisão com tudo que seja moderno, eu tinha consciência do que estaava fazendo.

Em primeiro lugar, porque tive excelente professor, o querido e inesquecível Laércio Barbosa, por quem minha admiração de aluno se transformou naturalmente na firme amizade de colega, vivida nos bons tempos do Euclides da Cunha. Todas as vezes que, ao longo de minhas aulas no antigo 2º grau, eu precisei recorrer à fonte latina, encontrei  em minha memória, frescas e indeléveis, as explicações daquele mestre prematuramente desaparecido. Pude sempre comprovar que aqueles longos exercícios em que a compreensão dos conteúdos não dispensava os esforços de memorização, poderoso instrumento hoje relegado ao abandono em nome de pretensas proibições pedagógicas. Guardar de cabeça o que se entendeu nunca foi nem será processo antiquado.

Um parêntese elucidativo:

Quando, tardiamente e antes por precaução legal do que por necessidade, matriculei-me no curso de Letras da Faculdade de Filosofia de Guaxupé, isso em 1976, tive a prova mais cabal de como Laércio Barbosa ensinara bem e como eu, numa circunstância também compartilhada por tantos outros colegas, tinha aprendido bem. Logo na primeira aula do curso, o professor de Latim da Faculdade (um padre bonachão e espirituoso cujo nome eu gostaria de resgatar) percebeu pela diferença de minha idade com a dos demais alunos que eu não estava ali sem um bom motivo. Ele perguntou-me em particular sobre os meus objetivos naquela sala de aula e me indagou a respeito do que eu já estudara em sua disciplina. Relatei-lhe o que havia aprendido de declinações, conjugações, análise lógica e textos clássicos. Ao fim de nossa conversa, o padre  me liberava da assistência às suas aulas, tendo em vista o caráter elementar dos conteúdos que lecionaria. Ao mesmo tempo, revelava uma superior compreensão das nossas tristes realidades educacionais:     

- Então, para a sua comodidade e para a  minha tranqüilidade, o Sr. fica dispensado do Latim...

Em segundo lugar, porque acredito ter dado um correto enfoque dos assuntos incluídos na programação de Latim na UNIP, onde permaneci até 2008. Procurei sempre o meio adequado de os estudantes entenderem a importância da cultura latina e se aprofundarem na compreensão dos principais aspectos morfológicos, sintáticos e etimológicos da língua portuguesa. .

Alguém, com muita propriedade, disse que o Latim sem o Grego é como a Aritmética sem as quatro operações. O que se dizer, então, do estudo do Português sem o recurso da base latina? Foi por isso que na primeira aula de Latim da UNIP desenhei na lousa uma árvore frondosa com um tronco poderoso, assim como que largada no espaço. Quando atualmente um aluno de espírito indagador faz daquelas perguntas,  que tantos professores detestam, a respeito desta ou daquela construção, a respeito desta ou daquela grafia ou ainda sobre a significação primeira de certos vocábulos, só tem cabido a seus pobres mestres a triste e conclusiva resposta:  porque sim.

A justificativa a tantas dessas incômodas indagações está nas raízes, que só se encontram no estudo adequado do Latim, abolido de nossas escolas de ensino fundamental e médio em 1961.

Dali para cá, o próprio ensino do Português entrou nesta decadência que hoje tantos deploram.

 

30/04/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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