Mais um rito de passagem
Foi Einstein quem tentou explicar, pela teoria da relatividade, por que as pessoas cada vez mais acham que o tempo passa muito depressa. Diz ele que para uma criança de dez anos, um ano que passe corresponderá a um décimo de sua vida toda; já para um sujeito de minha idade, o mesmo ano corresponderá a um oitenta avos, uma insignificância. Faz sentido, não?
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Mas o fato é que alguma coisa anormal anda ocorrendo nas altas esferas celestes, muito provavelmente alguma alteração no ângulo de inclinação do planeta Terra (cerca de dezoito graus), sem a qual não haveria as estações do ano - o que tornaria a vida muito mais sem graça.
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Ocorrem-me dois exemplos díspares dessa desenfreada passagem do tempo. A primeira delas, reminiscências de repetidas leituras de meu autor favorito, é o capítulo VII de Memórias póstumas de Brás Cubas, o do delírio: "Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu. Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal." (Palavras da Natureza ou de Pandora.) "Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma cousa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação de todos os séculos. Para descrevê-la, seria necessário fixar o relâmpago. Eu via tudo, desde essa cousa que se chama glória até essa outra que se chama miséria." E vai por aí Brás Cubas destilando pessimismo, resumido na frase definitiva de Pandora: "Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada."
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Cruzes! A vida é muito mais que isso. E o pós-vida também, assim esperamos nós.
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Se a ciência era lenta, como escreveu Machado, de sua época a nossos dias ela ganhou extrema velocidade. E mais que isso: o homem conseguiu não apenas fixar a imagem de todas as coisas como também dar a essas imagens a quase rapidez do relâmpago. E então caio no segundo exemplo dessa voracidade da passagem dos dias. A BBC de Londres produziu um documentário que em dois minutos, isso mesmo, dois minutos, reproduz as imagens de milhões de anos da vida neste planeta. Não há como o olho humano reter aquela avalanche de informes, que vão da saída do caos até os dias atuais. Quando muito, você retém uma figura de animal pré-histórico, uma cena de vida do homem primitivo, um lance da Idade Média, um episódio da Revolução Francesa, resíduos da Guerra da Secessão, das guerras mundiais, da bomba atômica, da chegada do homem à Lua...
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Como, pois, pretender num só golpe resumir um ano, como este que agora vive seus estertores? Dele vêm falando e escrevendo incansavelmente o jornal e a revista, o rádio, a televisão, as pessoas. Tudo em vão. Daí eu poder, sem remorso nem preguiça, lançar mão de um texto antigo, que traduz o que pensei em outras passagens e continuo pensando agora: Mas aposto que você guarda a salvo da corrosão da memória o que 2012 teve de importante para você, para seu círculo familiar e de amizades. O que bateu fundo no coração, na emoção, nos sentidos, nas fibras mais íntimas de seu ser - isso você não esquecerá, pois dessa matéria imprevisível, incontrolável se tecem os planos futuros, os anseios e a vaga noção de ser feliz, consciente ou não.
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Analise, pois, por este inesperado ângulo que lhe ofereço o que representou em sua vida o moribundo ano de 2012. Encontrará com certeza a justificativa de tantos pensamentos, sentimentos e projetos que de outro modo ficariam difíceis de entender. Na medida em que você perceber a inevitabilidade de suportar certas convivências, ganhará também o discernimento de aproveitar o minuto que passa, aquilo que Santo Tomás de Aquino denominou presente do presente. Sim, porque se você pensar bem, o passado já foi e o futuro nem é. Haveria, portanto, em nossa memória três tipos de presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Num, recordamos; noutro, vivemos com a rapidez de um relâmpago; no último, arquitetamos. Veja como você precisou ser paciencioso e atento neste 2012: sem essa disposição de espírito e esse propósito de alerta, você haveria ficado à margem de tantos acontecimentos, porque não teria percebido o instante exato e a maneira única de mentar a sua decisão e criar a coragem de ir buscar o que de repente passou a ser o mais valioso de seus tesouros, para cuja posse tudo valerá.
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Assim é, meu/minha caro/cara. Não se impressione com o que dizem ter sido importante em 2012. Por certo, nada ligado à política, ao esporte, à economia, à saúde, à educação. A história pessoal sobrepuja a história geral e quase sempre nada tem a ver com ela. Importante para você em 2012 foi o que lhe fez elaborar ou reforçar uma coerente maneira de encarar a vida, enriquecendo-se em compreensão, tolerância e, se possível, até em sabedoria e graça. Importante foi o que lhe fez rever conceitos, o que alertou para a aparência ilusória das coisas. Importante foi você assumir suas realidades, aí incluídas as limitações da idade e do estado. Importante foi a renovação de sua capacidade de sentir, de dar/receber, de relevar os (des)acertos próprios e alheios e de perceber com clareza que quase nada depende só de nós.
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Afinal, meu/minha caro/cara, qualquer empenho em ser feliz está inevitavelmente ligado à possibilidade e ao desejo de fazermos os outros felizes, seja por você ter entrado em outras vidas, seja por você não haver indevidamente permanecido em outras, seja ainda pelo exercício de um convívio que envolve delicado equilíbrio. No mais, é você não dar muita atenção a horóscopos, previsões, projeções e vaticínios. Creia, até com certa exageração e infundado otimismo, que você é mesmo o dono do seu destino e o capitão do seu navio.
29/12/2012
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