DOIS AMIGOS
 

 
Do Livro Tratador de Palavras

 

1.                  Fiquei espantado quando, por natural bisbilhotice, dei uma olhadela na ficha de inscrição daquele jogador alto, magro, de chute potentíssimo, que atuava pela ponta-esquerda do Rio Pardo Futebol Clube: 33 anos. Muito velho, pensei eu, então com meus 10 ou 11, idade em que todos com mais de 30 são tidos como mais pra lá do que pra cá. Nome: Adhemar Machado de Almeida, esportista amador no melhor sentido, cavalheiro, sempre gentil e amigável.

Ele trabalhava na Coletoria Estadual (Collectoria Estadoal – estava na placa oval de ferro esmaltado), situada então na ponta baixa da Praça 15 de Novembro, onde até recentemente funcionava uma sorveteria.

O Grêmio Euclides da Cunha, de que ele sempre participou como amigo de Oswaldo Galloti, Luiz Bittencourt e Hersílio Ângelo, aproximou-me de Adhemar e criou entre nós um proveitoso convívio.

Lembrei-me naturalmente de Adhemar ao passar um dia ao lado da Catedral da Sé, em São Paulo, e ver os andaimes que a circundavam – sinal de que estava em obras.

- Puxa, pensei comigo, esta igreja teve início em 1912, foi parcialmente utilizada nas comemorações do quarto centenário da cidade (1954) e até agora não está inteiramente pronta. Ao contrário, algumas de suas partes têm até merecido reformas.

Alguém mais afoito e inimigo desses rodeios tão ao gosto de quem escreve sem maiores premências, há de indagar: “E o que é que tem a ver o Adhemar de Almeida com a catedral de São Paulo?”

É que na volta da viagem que fizemos ao Rio de Janeiro em 1985 para a entrega do título de cidadão fluminense a Galotti, paramos no Santuário da Aparecida.

Adhemar se encantou com a vastidão da praça fronteiriça e do próprio templo, dos maiores do mundo.

Nem sei quando se iniciaram as obras da chamada Basílica Nova, mas certamente há mais de 60 anos. As paredes estavam todas com tijolos à vista, embora com tudo funcionando no atendimento diário a muitos romeiros, que em ocasiões especiais ultrapassam os trezentos mil.

E Adhemar olhando, admirando. Aí ele se aproximou de mim e disse:

“Que coisa, hem rapaz!”

(Todos eram rapazes para ele, não importando a idade.)

“Que coisa! Eu vou te dizer sinceramente: no dia em que esta igreja ficar prontinha, eu me caso nela..”

Ele sabia e eu também que aquela era uma promessa fácil de cumprir: templo grandioso que preze a própria grandiosidade, demora cem, duzentos anos para se concluir. A catedral de Chartres, na França, ultrapassou os trezentos.

Adhemar Machado de Almeida morreu placidamente sentado num banco da estação rodoviária de Belo Horizonte, no dia em que completava 83 anos. Solteiríssimo.

Alguém teve a feliz ideia de fazê-lo patrono do ginásio de esportes que o povo continua chamando de Tartarugão.

 

2.                  Nunca será demais retirar do esquecimento natural a amável figura de Moisés Gicovate (em seus documentos é Moysés Gikovate, mas a Melhoramentos, então editora de seus livros de Geografia, exigiu o aportuguesamento).

Apesar de consagrado autor de Euclides da Cunha, uma vida gloriosa, Gicovate só veio a frequentar São José do Rio Pardo muito depois. Foi mestre e amigo de muitos de nós; ainda há pouco tempo, Everton de Paula, euclidiano de Franca, lembrava comigo quanto aprendera com aquele grupo de professores do Ciclo de Estudos que não se limitavam a dar aulas e a ir embora rapidinho. Moisés e D. Zina, sua esposa, chegavam dia 8, participavam de tudo, ficavam horas e horas conversando com os colegas, com os alunos, com amigos que foram fazendo na cidade. Regressavam a São Paulo dia 16, já com planos para a próxima Semana...

·                    Sua frase de efeito: “Gosto muito de conversar com os outros, mas não troco ideias com ninguém. Gosto muito das minhas...”

·                    No Restaurante Itamarati, próximo ao Largo São Francisco, em São Paulo, Gicovate surpreendeu a nós, companheiros de refeição, quando chamou o garçom e ordenou a sério: “Escute aqui, leve este copo de chope e o encha direito. Não vim aqui pagar colarinho, vim tomar chope!” – O melhor é que o garçom foi e voltou; no copo, menos de um dedo de espuma...

·                    Moisés recebia menos direitos autorais do que achava merecer. Autor de muitos livros, nem por isso auferia a justa recompensa de seu trabalho intelectual de mais de cinquenta anos. Eu estava com ele nas imediações de seu escritório instalado na Rua Senador Feijó. De repente uma voz chamou.

“Dr. Moisés! Dr. Moisés!”

E logo surgiu um sujeito bem-apanhado, sorridente, que se apresentou:

 

- Fui seu aluno no Colégio Rio Branco. Aprendi muito com o Sr. e guardo todos os seus livros de Geografia. Ainda outro dia fiquei muito satisfeito em poder comprar seu novo livro de Direito Agrário...

Moisés Gicovate, escaldado com a baixa vendagem de obras que tratem de assunto especializado, agradeceu as boas palavras do reconhecido aluno e fingiu espanto:

“Ah, então foi o Sr. que o comprou?!”

 

29/10/2016
emelauria@uol.com.br

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