Vontade de lembrar, vontade de esquecer


Crepúsculo no Cristo.
(Marcio José Lauria FILHO)

Durante algum tempo  tive como colega no Instituto de Educação Euclides da Cunha um sujeito franzino, elétrico, com grande dificuldade de fazer amigos. Chamava-se Fábio já não me lembra de quê e lecionava Espanhol, Português, o que sobrasse.

Depois que adquiriu certa confiança em mim, abriu-me a apertada porta de sua intimidade intelectual, declamou-me versos seus e me deu por escrito uma quadrinha que jurou ser de sua lavra:

 

Saudade é dor que dá,

Mas não é dor de doer.

É vontade de lembrar,

É vontade de esquecer.

 

Gostei dela, tanto que guardei o papelzinho ememorizei o seu conteúdo, que acho bela definição de um estado emocional tantas vezes inefável, indizível.

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Pessoas versadas no tema lembranças e esquecimentos dizem que somos aquilo que recordamos e também aquilo que resolvemos esquecer. Fazemos um esforço consciente para descartar da memória  coisas desagradáveis. Chegar a isso demanda aprendizado. Quem não consegue passar a antiga e boa borracha em certas situações dolorosas da vida, corre o risco de gastar seu tempo fazendo coisas sem nenhuma valia ou interesse. Mas o cérebro apaga quase tudo que não nos interessa, num processo contínuo de repressão bem-intencionada, provocando  reconfortantes amnésias ou até mesmo salutares anistias. Como se amnésia e anistia não fossem parentas próximas no grego, com o sentido geral de perdão, esquecimento...

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Sem essa capacidade de esquecimento individual ou coletivo, o convívio social seria impossível, porque tanto um jogo de futebol quanto uma reunião de condôminos ou uma corriqueira briga de casal acabariam em desastre. O que se troca de xingamentos num Corinthians e Palmeiras; o que se fala de pesadas verdades e contundentes desaforos numa briga de vizinhos ou numa desavença mais séria entre marido e mulher, horas depois deixam os envolvidos até envergonhados. Ainda bem que há o esquecimento, o oportuníssimo esquecimento. Esquecer é uma arte que se aprende lentamente: as pessoas  ficam mais tolerantes quando envelhecem porque aprendem a identificar e selecionar as lembranças que valem a pena. Por isso a maioria dos velhos sabe quão inútil é brigar por qualquer motivo. Assumem, sem saber, uma postura intelectual que Machado de Assis emprestou ao Conselheiro Aires: sentem o tédio da controvérsia. Muitos velhos preferem  desenterrar memórias antigas, geralmente episódios da infância e da juventude que correspondem ao tempo da felicidade  -- aquele em que eram ágeis, fortes, bonitos, potentes, com toda a vida pela frente... Quer dizer: o velho que se sinta ao menos ágil,  potente, com planos para o futuro,  na verdade não é velho! Consolador, não? Quem explica isso direitinho é o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, cego desde muito moço e nem por isso posto à margem da vida.

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Experiências de laboratório deitaram por terra crença muito arraigada, a de que os velhos perdem a memória de ocorrências recentes e retêm as mais antigas. O cérebro cria, isto sim, uma memória que dura poucas horas e, paralelamente, outra que pode durar a vida toda. Provou-se mais: a maioria das pessoas alcança os oitenta anos com o intelecto íntegro. Se falam mais do passado é porque lá viveram coisas com mais intensidade e mais consequências  A memória só fica mais lenta, mas em compensação muito mais vasta, pregando às vezes agradáveis surpresas ou perigosas indiscrições ao trazer à tona pessoas, episódios e ocorrências que bem mereceriam permanacer em tumulares silêncios.

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Então vem a pergunta inevitável: como manter em boa forma a memória? Ainda a resposta tem o testemunho de  Borges que, aos oitenta e seis anos, às vésperas de morrer,  praticava com intensidade a literatura e o aprendizado de línguas, para provar que memória é função  que depende de uso: quanto mais a exercitamos, mais a conservamos. Um dado cientificamente comprovado: o mal de Alzheimer é menos severo em pessoas com nível superior porque elas usaram mais o intelecto. Resolver palavras cruzadas, não dessas prá lá de fáceis, jogar damas e xadrez e até mesmo baralho com parceiros malandros e fama de ladrões estimulam mais o cérebro do que assistir à televisão, especialmente corujando, ou seja, indo  de canal em canal, sem um programa específico. Mas não existe nada melhor nem mais eficiente para a  memória do que ler atentamente, tentando refletir sobre o texto e dele fazendo resumos mentais. Um velho e querido   professor, o Dr. Lilo, sempre nos dizia na Escola Normal que o melhor modo de dominar um assunto é expô-lo a outra pessoa. Às vezes chateamos o ouvinte compulsório, mas a técnica funciona.

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É a leitura dita reflexiva que põe em prática a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação. Até mesmo uma frase simples de poucas palavras estimula a memória. Daí o perigo que correm os preguiçosos, desatentos, os que acham mil desculpas de não enfrentarem nem escritos elementares. A leseira mental de certos velhotes chega a dar ímpetos de agarrá-los pelos colarinhos e obrigá-los a um curto momento de concentração. É de interesse social que a imensa maioria da população seja estimulada  ao uso constante da memória através da leitura. No entanto, no Brasil, a leitura está sendo considerada, cada vez mais, uma excentricidade... Os resultados avassaladores dessa falta de apego à leitura não se têm feito esperar; poucos paises apresentam alunos com tão baixo nível de compreensão textual como o Brasil. Isso é lastimável de mil modos, desde a triste situação de quem nem sabe tomar uma condução, passando pelo operário que não segura o emprego porque não sabe ler instruções elementares, até o estudante universitário que só entende determinado assunto se alguém lê para ele e interpreta o sentido da mensagem. Casos extremos dessa crescente incapacidade de entender o que se lê, recebem o nome de acroase. Os acroatas aparentemente sabem ler, mas  sofrem de invencível barreira: nada entendem sem que outra pessoa lhes explique o que acabaram de ler... Isso tudo resumido na terrível frase que o Prof. Hersílio Ângelo oferecia a seus alunos para análise sintática: “Alunos há que estudam, mas não entendem o que leem”... Quem for do ramo que se habilite a esse exercício tão arcaico e excelente para a memória...

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Discussões vêm sendo travadas em torno de momentosa questão: crianças familiarizadas com o computador têm mais capacidade de memória?  Dizem os especialistas que  a intimidade com computadores pode trazer benefícios à retenção de fatos. As crianças têm acesso a um maior volume de informações e fazem muitas atividades ao mesmo tempo. Isso tem um impacto positivo, mas não comprova o que muitos gostariam que passasse a verdade incontestável: que os meninos de hoje sejam mais inteligentes do que seus avós. Além do mais, podem cair nas perigosas armadilhas próprias da abusiva atenção ao micro, ao celular e à internet –   a perda de tempo com assuntos sem nenhuma relevância social ou cultural.  Gênios continuam sendo raridade, menos para pais e avós desprovidos de qualquer senso crítico ou de noção do ridículo, que veem em qualquer bobagenzinha dita pelo Júnior ou pela Mariazinha sinais evidentes de genialidade e de ultrapassagem dos duzentos pontos de Q.I.

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E os remédios para a memória? Dizem os especialistas que pouco ou nada funcionam.Melhor anotar o que seja importante e organizar agendas facilmente consultáveis. As pesquisas científicas estão mais à procura de uma pílula da memória, que teria por primeira finalidade encontrar respostas aos sintomas do mal de Alzheimer. Tudo se encontra ainda numa fase pouco produtiva. Quem sabe a solução esteja na manipulação de genes para impedir a manifestação de doenças degenerativas do cérebro?

Enquanto esses avanços futuros não chegam à realidade cotidiana, a melhor prevenção para a perda de memória é, mesmo, a boa e velha leitura.

Se você conseguiu ler e entender este longo e denso texto, parabéns. Aquele perigoso alemão, o tal Alzheimer, não penetrou em seu cérebro.

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Não tenho queixas de minha memória; ao contrário, considero-a boa porque guardo nítidas recordações da mais tenra infância, da meninice, da juventude, da maturidade, da velhice, tanto que levo muito a sério a sutil observação do grande escritor alemão Hermann Hesse:  “Por vezes, o que as pessoas mais desejam é exatamente esquecer!” Ah, também nunca me esqueço de pagar o que adquiro, porque se depender apenas de mim e de minhas posses, nada compro a crédito.

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Poucas coisas haverá mais tristes do que a perda da memória ou o uso errôneo dos processos mnemônicos – aqueles criados para facilitar a retenção de nomes, datas, fatos. Uma falecida colega de magistério, daquelas falantes, engraçadas, lembrava com malicia a história (quem sabe verídica) do sujeito que se gabava de sua capacidade de reter dados, a partir de engenhosas associações.  Quando apresentado a uma distinta senhora, por nome dona Herda, sabe-se bem  que associação ele criou para não o esquecer tão cedo. Tanto que, tempos depois ao rever dona Herda, apressou-se a cumprimentá-la cordialmente, dizendo:

- Como vai a senhora, dona Hosta?

Situações estressantes podem ocasionar momentâneos e comprometedores lapsos de memória, como foi o caso do experimentado orador dirigindo-se a grande plateia:

- Há meia hora, juro-lhes que eu e Deus sabíamos o que eu iria lhes dizer esta noite.. . Agora, só Deus sabe!

 

29/06/2013
emelauria@uol.com.br

 

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