Vontade de lembrar, vontade de esquecer
Durante algum tempo tive como colega no Instituto de Educação Euclides da Cunha um sujeito franzino, elétrico, com grande dificuldade de fazer amigos. Chamava-se Fábio já não me lembra de quê e lecionava Espanhol, Português, o que sobrasse.Depois que adquiriu certa confiança em mim, abriu-me a apertada porta de sua intimidade intelectual, declamou-me versos seus e me deu por escrito uma quadrinha que jurou ser de sua lavra:
Saudade é dor que dá, Mas não é dor de doer. É vontade de lembrar, É vontade de esquecer.
Gostei dela, tanto que guardei o papelzinho ememorizei o seu conteúdo, que acho bela definição de um estado emocional tantas vezes inefável, indizível. * Pessoas versadas no tema lembranças e esquecimentos dizem que somos aquilo que recordamos e também aquilo que resolvemos esquecer. Fazemos um esforço consciente para descartar da memória coisas desagradáveis. Chegar a isso demanda aprendizado. Quem não consegue passar a antiga e boa borracha em certas situações dolorosas da vida, corre o risco de gastar seu tempo fazendo coisas sem nenhuma valia ou interesse. Mas o cérebro apaga quase tudo que não nos interessa, num processo contínuo de repressão bem-intencionada, provocando reconfortantes amnésias ou até mesmo salutares anistias. Como se amnésia e anistia não fossem parentas próximas no grego, com o sentido geral de perdão, esquecimento... * Sem essa capacidade de esquecimento individual ou coletivo, o convívio social seria impossível, porque tanto um jogo de futebol quanto uma reunião de condôminos ou uma corriqueira briga de casal acabariam em desastre. O que se troca de xingamentos num Corinthians e Palmeiras; o que se fala de pesadas verdades e contundentes desaforos numa briga de vizinhos ou numa desavença mais séria entre marido e mulher, horas depois deixam os envolvidos até envergonhados. Ainda bem que há o esquecimento, o oportuníssimo esquecimento. Esquecer é uma arte que se aprende lentamente: as pessoas ficam mais tolerantes quando envelhecem porque aprendem a identificar e selecionar as lembranças que valem a pena. Por isso a maioria dos velhos sabe quão inútil é brigar por qualquer motivo. Assumem, sem saber, uma postura intelectual que Machado de Assis emprestou ao Conselheiro Aires: sentem o tédio da controvérsia. Muitos velhos preferem desenterrar memórias antigas, geralmente episódios da infância e da juventude que correspondem ao tempo da felicidade -- aquele em que eram ágeis, fortes, bonitos, potentes, com toda a vida pela frente... Quer dizer: o velho que se sinta ao menos ágil, potente, com planos para o futuro, na verdade não é velho! Consolador, não? Quem explica isso direitinho é o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, cego desde muito moço e nem por isso posto à margem da vida. * Experiências de laboratório deitaram por terra crença muito arraigada, a de que os velhos perdem a memória de ocorrências recentes e retêm as mais antigas. O cérebro cria, isto sim, uma memória que dura poucas horas e, paralelamente, outra que pode durar a vida toda. Provou-se mais: a maioria das pessoas alcança os oitenta anos com o intelecto íntegro. Se falam mais do passado é porque lá viveram coisas com mais intensidade e mais consequências A memória só fica mais lenta, mas em compensação muito mais vasta, pregando às vezes agradáveis surpresas ou perigosas indiscrições ao trazer à tona pessoas, episódios e ocorrências que bem mereceriam permanacer em tumulares silêncios. * Então vem a pergunta inevitável: como manter em boa forma a memória? Ainda a resposta tem o testemunho de Borges que, aos oitenta e seis anos, às vésperas de morrer, praticava com intensidade a literatura e o aprendizado de línguas, para provar que memória é função que depende de uso: quanto mais a exercitamos, mais a conservamos. Um dado cientificamente comprovado: o mal de Alzheimer é menos severo em pessoas com nível superior porque elas usaram mais o intelecto. Resolver palavras cruzadas, não dessas prá lá de fáceis, jogar damas e xadrez e até mesmo baralho com parceiros malandros e fama de ladrões estimulam mais o cérebro do que assistir à televisão, especialmente corujando, ou seja, indo de canal em canal, sem um programa específico. Mas não existe nada melhor nem mais eficiente para a memória do que ler atentamente, tentando refletir sobre o texto e dele fazendo resumos mentais. Um velho e querido professor, o Dr. Lilo, sempre nos dizia na Escola Normal que o melhor modo de dominar um assunto é expô-lo a outra pessoa. Às vezes chateamos o ouvinte compulsório, mas a técnica funciona. * É a leitura dita reflexiva que põe em prática a memória das letras, a memória verbal e a memória da imaginação. Até mesmo uma frase simples de poucas palavras estimula a memória. Daí o perigo que correm os preguiçosos, desatentos, os que acham mil desculpas de não enfrentarem nem escritos elementares. A leseira mental de certos velhotes chega a dar ímpetos de agarrá-los pelos colarinhos e obrigá-los a um curto momento de concentração. É de interesse social que a imensa maioria da população seja estimulada ao uso constante da memória através da leitura. No entanto, no Brasil, a leitura está sendo considerada, cada vez mais, uma excentricidade... Os resultados avassaladores dessa falta de apego à leitura não se têm feito esperar; poucos paises apresentam alunos com tão baixo nível de compreensão textual como o Brasil. Isso é lastimável de mil modos, desde a triste situação de quem nem sabe tomar uma condução, passando pelo operário que não segura o emprego porque não sabe ler instruções elementares, até o estudante universitário que só entende determinado assunto se alguém lê para ele e interpreta o sentido da mensagem. Casos extremos dessa crescente incapacidade de entender o que se lê, recebem o nome de acroase. Os acroatas aparentemente sabem ler, mas sofrem de invencível barreira: nada entendem sem que outra pessoa lhes explique o que acabaram de ler... Isso tudo resumido na terrível frase que o Prof. Hersílio Ângelo oferecia a seus alunos para análise sintática: “Alunos há que estudam, mas não entendem o que leem”... Quem for do ramo que se habilite a esse exercício tão arcaico e excelente para a memória... * Discussões vêm sendo travadas em torno de momentosa questão: crianças familiarizadas com o computador têm mais capacidade de memória? Dizem os especialistas que a intimidade com computadores pode trazer benefícios à retenção de fatos. As crianças têm acesso a um maior volume de informações e fazem muitas atividades ao mesmo tempo. Isso tem um impacto positivo, mas não comprova o que muitos gostariam que passasse a verdade incontestável: que os meninos de hoje sejam mais inteligentes do que seus avós. Além do mais, podem cair nas perigosas armadilhas próprias da abusiva atenção ao micro, ao celular e à internet – a perda de tempo com assuntos sem nenhuma relevância social ou cultural. Gênios continuam sendo raridade, menos para pais e avós desprovidos de qualquer senso crítico ou de noção do ridículo, que veem em qualquer bobagenzinha dita pelo Júnior ou pela Mariazinha sinais evidentes de genialidade e de ultrapassagem dos duzentos pontos de Q.I. * E os remédios para a memória? Dizem os especialistas que pouco ou nada funcionam.Melhor anotar o que seja importante e organizar agendas facilmente consultáveis. As pesquisas científicas estão mais à procura de uma pílula da memória, que teria por primeira finalidade encontrar respostas aos sintomas do mal de Alzheimer. Tudo se encontra ainda numa fase pouco produtiva. Quem sabe a solução esteja na manipulação de genes para impedir a manifestação de doenças degenerativas do cérebro? Enquanto esses avanços futuros não chegam à realidade cotidiana, a melhor prevenção para a perda de memória é, mesmo, a boa e velha leitura. Se você conseguiu ler e entender este longo e denso texto, parabéns. Aquele perigoso alemão, o tal Alzheimer, não penetrou em seu cérebro. * Não tenho queixas de minha memória; ao contrário, considero-a boa porque guardo nítidas recordações da mais tenra infância, da meninice, da juventude, da maturidade, da velhice, tanto que levo muito a sério a sutil observação do grande escritor alemão Hermann Hesse: “Por vezes, o que as pessoas mais desejam é exatamente esquecer!” Ah, também nunca me esqueço de pagar o que adquiro, porque se depender apenas de mim e de minhas posses, nada compro a crédito. * Poucas coisas haverá mais tristes do que a perda da memória ou o uso errôneo dos processos mnemônicos – aqueles criados para facilitar a retenção de nomes, datas, fatos. Uma falecida colega de magistério, daquelas falantes, engraçadas, lembrava com malicia a história (quem sabe verídica) do sujeito que se gabava de sua capacidade de reter dados, a partir de engenhosas associações. Quando apresentado a uma distinta senhora, por nome dona Herda, sabe-se bem que associação ele criou para não o esquecer tão cedo. Tanto que, tempos depois ao rever dona Herda, apressou-se a cumprimentá-la cordialmente, dizendo: - Como vai a senhora, dona Hosta? Situações estressantes podem ocasionar momentâneos e comprometedores lapsos de memória, como foi o caso do experimentado orador dirigindo-se a grande plateia: - Há meia hora, juro-lhes que eu e Deus sabíamos o que eu iria lhes dizer esta noite.. . Agora, só Deus sabe!
29/06/2013
|