NEM ELES JÁ SE SUPORTAM
Não havia nenhuma especial expectativa em torno do musical norte-americano “Chicago”, recentemente estreado no Teatro Abril, de São Paulo.
Minha geração, domesticada pelos filmes de todos os gêneros, originários dos estúdios do Grande Irmão do Norte, mal tolerava aquelas cantorias todas que sustentavam enredos fraquíssimos e histórias esquecíveis já à saída do cinema. Claro, havia as gloriosas exceções como Cantando na Chuva, com um encharcado Gene Kelly ( ou seria Fred Astaire?) bobamente apaixonado e dançando sozinho com seu guarda- chuva, até trepando e rodopiando em poste baixo. De modo geral, detestávamos os musicais.
Mas por este ou aquele motivo, inclusive o de aproveitar um crédito de espetáculo perdido que me concedera o bom Tony Lourenço, lá fomos minha mulher e eu, sábado passado, 22, contribuir para mais uma vitória do capitalismo selvagem, presente sempre e em todos os setores das atividades desenvolvidas pelos chamados ianques.
Acho muito civilizado e cômodo um grupo de pessoas sair de uma cidade como a nossa e ir à capital com a finalidade única de assistir a determinado espetáculo ou ver uma exposição específica. Foi o que não pude, para pesar meu, fazer com relação à recente mostra do louquíssimo pintor catalão Pablo Picasso...
O fato é que lá pelas duas da tarde, estávamos nós, trinta e cinco pessoas, num bom ônibus, levados pela mesma disposição de não ficarmos tão por fora do que acontece no variado mundo dos espetáculos, hoje só possíveis em cidades de grande porte.
Já conhecíamos o Teatro Abril, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Eu só não me lembrava do tamanho dele, com capacidade para mil e duzentos assistentes. Como fazem os bons interioranos paulistas, principalmente os que moram perto da divisa com Minas Gerais, chegamos bem cedo, não os primeiros, porque havia caravanas de outras cidades talvez mais perto ainda de Minas. Um dos nossos comentou quando já instalados na platéia: “Acho que hoje vai sobrar muito lugar vago...” Pois sim, quando foi dado o terceiro e último sinal para o início da apresentação, logo depois das seis horas, não havia uma só poltrona a ser ocupada.
Novidade na disposição da orquestra: não invisível e espremida no fosso, como de costume, mas dominando o centro do palco, com os treze ou quatorze músicos encarapitados numa espécie de arquibancada. Muito bom ver quem está tocando tão bem, embora isso limite quase todas as tentativas de mudança de cenário, que ficou pobre, em relação à riqueza das roupas (ou da falta delas), à beleza plástica e acrobática dos dançarinos, às boas vozes individuais e coletivas.
Eu não nutria nenhum especial entusiasmo pelo enredo da peça, uma espécie de radiografia pessimista da corrompida Chicago dos anos vinte. E o início da ação só fez aumentar em mim a idéia negativa do assunto, carregado de situações e de palavras de baixo nível. Por vezes me apanhei pensando em outras coisas, bem longe dali, e fazendo a avaliação que sempre faço nesses espetáculos ao vivo: se eu estivesse vendo aquilo tudo pela televisão, em casa, mudaria ou não de canal? Até o final da primeira meia hora, sem dúvida, eu teria mudado. Depois ocorreu sensível melhora. Danielle Winits, Adriana Garambone e Daniel Boaventura foram-se impondo junto ao público e as coisas começaram a fazer mais sentido.
E assim chegamos ao intervalo de quinze minutos que separou os dois atos. A segunda parte começou de maneira notável: a orquestra dirigida por Miguel Briamonte executando um “Entreato” que arrancou os mais sinceros aplausos do público. Em nenhum momento artista algum conseguiu superar no palmômetro aquela apresentação de rara beleza, com os metais mostrando a força que sempre tiveram na música de jazz. Também, no final do espetáculo, houve muitas palmas protocolares e outras calorosas para, por exemplo, Jônatas Joba, na patética figura de Amos Hart, marido bonzinho, apaixonado e espezinhado por uma das duas mulheres más da trama, Roxie Hart (Adriana Garambone).
Num crescendo o musical chegou a seu término. Nada de supersúper, mas tudo exaustivamente treinado, cronometrado, levado a sério. Tudo em rigorosa observância das instruções que os detentores dos direitos autorais exigem das adaptações fora dos Estados Unidos para este espetáculo, ganhador de trinta e sete prêmios, o mais importante deles um Grammy Award. Fica-se cansado só de se ver o que Danielle Winits (foto), cantando e contracenando com uma cadeira (isso mesmo!), mostra como artista no auge da forma física, no pleno domínio da expressão corporal. Nada de supersúper também em matéria de música melodiosa; nenhum dos vinte e um números atinge de maneira mais duradoura os ouvidos e os corações dos espectadores. Ninguém sai assobiando trechinho algum. E, ao fim, o discurso politicamente incorreto do chicanista advogado Billy Flynn (Daniel Boaventura) que deixa muito clara a mensagem mais contemporânea possível: o modo de vida dos americanos atingiu grau tal de corrupção, de desonestidade, que nem eles já estão se suportando. Imagine-se, então, o nível de insatisfação do restante do mundo, em face da hegemonia deles em todos os terrenos da atividade humana.
De vez em quando dou uma chegadinha ao cemitério, de preferência em dia meio chuvoso ou frio, para não ter de conversar enquanto caminho por lá. Lembro-me sempre de um conto de Carlos Drummond de Andrade – “Flor, telefone, moça” – e me abstenho de tocar em qualquer objeto. Não quero voz nenhuma do além me cobrando alguma coisinha apanhada ao acaso.
Há as paradas obrigatórias, em frente à sepultura de parentes, amigos, conhecidos. Quanta gente com quem convivemos já morreu! Colegas de estudos, colegas de profissão, colegas de tiro-de-guerra, colegas de política... Minha faixa de idade está plenamente convocável.
Ah, os erros das inscrições, as falsas declarações de um amor eterno que não suportou dois meses de viuvez... “Aqui jaz os restos de Fulano”... O verbo jazer, com o sentido de repousar, ficar imóvel, não se digna em muitos lugares deste cemitério de concordar com seu sujeito plural. Diz-se corretamente “Aqui jaz Fulano”; mas “Aqui jazem os restos de Fulano”. Tão difícil assim?
Sem esforço algum, vêm à mente as muitas histórias de amor, sacrifício, ingenuidade e tragédia relembradas à simples passagem perto de um nome, de uma referência. Assuntos muito bons para crônicas, contos e até novelas picantes, bem ao gosto de nosso público...
Não dá para não lembrar alguns episódios originais, direta ou indiretamente relacionados com o nosso hoje lotadíssimo cemitério:
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