A ovelha resgatada


O fastígio do ipê-branco.
(No muro lateral da Escola "Dr. Cândido Rodrigues")

 

A relação entre o irmão-chefe e aquela diferenciada irmã, tida como ovelha negra, era um misto de amor e ódio. Tudo por causa da beleza provocante dela e do mandonismo dele. De vez em quando, uns arranca-rabos, mútuas críticas e recriminações logo esquecidas. No fundo, eles se queriam bem.

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Quando apareceu aquele sujeito de boa aparência e ótimas referências que propôs casar-se com ela, o irmão-chefe alegrou-se mais do que demonstrou. Uma vez casada e ainda morando em outra cidade, ela deixava de  ser uma pedra no sapato da família toda.

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Casaram, tiveram um filho, foram felizes, até que aquele sujeito de boa aparência e ótimas referências morreu, assim sem mais nem menos.

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O que fazer? O que não fazer? A família do finado se ofereceu para tomar conta do menininho, coisa que para geral surpresa a viuvinha aceitou. Não só aceitou como resolveu voltar para sua cidade de origem, criar vida nova.

E criou mesmo. Três meses depois, abandonou os sinais exteriores de viuvez –  roupas pretas fechadas,  cara triste. Aliviou o luto, como se dizia, primeiro com umas blusas discretas, brancas com bolinhas pretas, miúdas. Depois, um leve ruge na face, unha esmaltada com discrição, vestidos discretamente floridos, umas voltinhas pela praça meio deserta, fechando o dia bem trabalhado como costureira.

E o irmão-chefe de novo preocupado, certo de que, mais cedo ou mais tarde, a irmã iria  aprontar umas das suas.

E não demorou muito – pouco mais de um ano de viuvez e ela se habilitava a namorar um e outro, em busca sabe-se bem de quê.

Falou-se muito dela,  de sua provocante beleza e das  liberdades que dava a seus namorados sem compromisso .

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A mulher do irmão-chefe não suportava a cunhada. Criada em severa moralidade, repeliu com energia  o começo daquela prosa meio enviesada do marido: que seria bom a irmã morar com eles, que isso, que aquilo.

- Na minha casa, não! Não vou conviver com alguém que anda por aí, pra baixo e pra cima, se oferecendo!

A mulher do irmão-chefe ganhou aquela parada decisiva e até aceitou  como natural o pouco-caso da cunhada rebelde.

- Importa-me lá se ela gosta ou não de mim. Fumaça pra lá, santinho pra cá! Eu quero tudo nos seus lugares, eu quero é paz na minha vida. Ela  quanto mais longe de mim, melhor.

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Até que...

Até que um sujeito meio passadão, baixote, um tanto corcunda  e com os dedos manchados de nicotina, veio abrir umas tratativas com o irmão-chefe.

- Olhe, seu fulano, eu sou viúvo, meus quatro filhos estão bem crescidos, sou fiscal estadual e me interesso muito em me casar com sua irmã viúva.

Alvíssaras! Alvíssaras! – deveria ter proclamado  o irmão, se conhecesse  esta palavra tão importante.

O namoro da bela mulher e do abonado viúvo foi discretíssimo, à vista de todos. Passaram a visitar a casa do irmão-chefe e a contar com o sempre desconfiado apoio da mulher do chefe.

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Antes do segundo ano de viuvez dela, casaram-se no civil e no religioso, com uma festinha íntima na casa do irmão-chefe, que encomendou umas quitandas  e abriu cerimonioso uma guardadíssima garrafa de vinho do Porto (Adriano Ramos Pinto), com o qual brindou o casal e as poucas testemunhas.

Moraram uns tempinhos no menos ruim dos hotéis locais, mudaram-se várias vezes, em função do serviço do fiscal estadual. Estavam em São Paulo quando da  aposentadoria do fiscal . Voltaram para o interior, ocuparam o velhíssimo casarão da família dele em cidade vizinha. Foram felizes, bem felizes. Irmã e irmão se visitavam com renovada amizade, os filhos do viúvo e o filho da viúva se deram bem,  a vida foi  gostosa.

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O fiscal tinha lá seu jeito para dar umas pinceladas, pintava muitos quadros, quase sempre cópias de fotografias ou de outros quadros. O banheiro do casarão teve cada azulejo decorado com uma diferente borboleta. (Quantos elogios e quantas brincadeiras por causa das alegres borboletas!) Está até hoje dependurada em velha parede a meu alcance uma das muitas versões dele da cabana, da paineira retorcida e da ponte de Euclides da Cunha.

A ex-ovelha negra ia todos os dias à igreja. Não era uma beata, mas mulher de fé, grata ao belo destino que teve, sempre sob a especial proteção de São Judas Tadeu.

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O fiscal-pintor morreu velhíssimo nos braços da companheira, depois de viverem juntos  por mais de vinte anos. Ela conservou quase intocável o casarão, os quadros dele, o quintal cheio de sombras e de antúrios. Também morreu bem depois, em paz com a vida que pôde ter.

Os dois estão sepultados juntos, num túmulo que não abriga restos de mais ninguém.

 

29/04/2017
emelauria@uol.com.br

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