O Dr. Roxo e a carta manuscrita


 

1. Quando dei com aquele embrulho, cuidadosamente fechado, sobre minha mesa de trabalho, pensei comigo  que se tratava de uma das gentilezas que os bancos, eternamente em guerra, fazem  no começo de cada ano, para atrair e conservar clientes, mesmo os de recursos insignificantes.

Engano completo: era de fato um belo livro, de capa dura e papel especial, com um título incomum: Dr. Roxo, um médico chamado Mathias. Na foto que domina quase toda a capa, um senhor de jaleco falando a um telefone daqueles pretos, clássicos, em posição nada confortável. Parece sorrir. E bem abaixo, o mais modestamente possível, o nome do autor, Eduardo Dias Roxo Nobre.

Inevitável a curiosidade de bibliófilo: na capa interna a foto de  uns desgastados ladrilhos hidráulicos em abóbora, amarelo e preto, que, depois vim a saber, eram da Igreja Matriz  Nossa Senhora do Patrocínio, em Jaú, onde o Dr. Roxo havia sido batizado.  E nenhuma indicação sobre a data de publicação da bela obra.  Fica entre 2009 e 2010.  O livro teve planejamento editorial de “Histórias Mil”, design de Gilberto Duobles. Impresso, e muito bem,  pela Gráfica São Sebastião, de nossa vizinha São Sebastião da Grama.         

 A dedicatória: “Meu amigo Prof. Márcio, escrevi este apenas para circulação interna e familiar. Apenas exponho as saudades que tenho de meu pai.

Ofereço com meu abraço.

EDUARDO, jan. 2011”

E seguem-se cento e poucas páginas de um relato interessante em si e, além disso, muito bem ilustradas com fotos de pessoas, da casas, de lugares, de animais, de diploma, de recortes jornalísticos, de passaporte, de carta-patente...

Enfim, Eduardo levando a sério e com sucesso o seu plano filial de manter viva a memória do pai, Mathias Octavio Roxo Nobre, bem-sucedido médico em São Paulo, de quem recebera não apenas o afeto paternal, mas a orientação segura, a palavra amiga, a serenidade da permanente convivência.

Frase do poeta português Fernando Pessoa serve de epígrafe, por escolha de Carlos Eduardo Moreira Ferreira, grande amigo do homenageado: “O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

No Sumário constam: Apresentação. – Carlos Eduardo Moreira Ferreira. – Filho da terra roxa. – Na Suíça. – Em Mathias, a força de Eugênia. – Os anos de estudante. – A determinação de um médico. – Em família. – Um homem criativo.. –  A última luta. – Dráuzio Varella. –  Um sogro muito, muito, muito especial.

Na Apresentação,  Eduardo explica como cumpriu uma promessa:  estava no Hospital

Sírio-Libanês, dezembro de 2008,  recuperando-se  de uma cirurgia cardíaca quando entram no quarto, excitadíssimas, duas queridas netinhas: Helena e Alice. “Vovô, você nunca contou pra nós a história de seu pai.” Resolveu então  “contar a história de meu pai, juntando as memórias que tenho dele... Meu querido e saudoso pai!”

Durante toda a sua vida, o Dr. Roxo dedicou-se a lutar contra o câncer e morreu da mesma doença. “Pesquisador, idealista e extremamente humilde”, fundou a Sociedade Brasileira de Radioterapia, e foi seu primeiro presidente.

Segundo o orador da primeira turma de cancerologistas do Instituto Central da Associação Paulista de Combate ao Câncer, “o Dr. Roxo foi lembrado como notável educador, digno, probo, legítimo chefe de escola, que os cancerologistas de todo o mundo reverenciam.”

De seu currículo constam: chefe de Radioterapia  no Hospital São Paulo e no Instituto Radium; diretor da primeira clínica da Associação Paulista de Combate ao Câncer no Hospital santa Cruz e membro titular da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.

Além e acima de suas qualidades de médico, Eduardo ressalta no seu pai o homem, o cidadão, o esposo afetuoso, o homem de família, enfim.  O livro traz dezenas de provas disso, seja por fotografias, seja por depoimentos, seja pelo testemunho de pessoas ligadas, ou não, ao círculo íntimo do homenageado.

Manejando com facilidade o idioma, o Dr. Roxo escreveu na mocidade poemas concretistas que chegou a estampar no  Estadão.  No Suplemento Agrícola do mesmo jornal, publicou um belo texto dirigido a Eduardo, em que fala do orgulho de ter um filho agricultor.

Transcrevo literalmente o poema, chamando a atenção do leitor para algumas de suas qualidades: um longo título, ao gosto dos poetas antigos; o emprego do termo ordenações,  próprio dos textos legais portugueses e espanhóis, dos tempos de D. Manuel  e dos Filipes de Espanha; o uso elegante e de inspiração bíblica de verbos (conduzirás, serás) no futuro do presente e com valor de imperativo, a partir do modelo “Amarás o Senhor teu Deus”:

 

Fico satisfeito em saber que, publicando pequena nota a respeito do depoimento colhido pelo Dr. Luís Carlos Montanheiro a respeito das múltiplas atividades de seu pai, Carlos Montanheiro, dei ao Eduardo o  estímulo  de ele me enviar o livro sobre a vida do Dr. Mathias Octavio Roxo Nobre, vivíssimo na memória  do filho lavrador.

 

2.   Andava  sumido Everton de Paula, da Universidade de Franca, companheiro de tantas Semanas Euclidianas, fruidor da boa amizade com Moisés Gicovate, Adelino Brandão, Ivo Vannuchi, para só lembrar os finados. Apesar de muito solicitado, nestes últimos anos tem sempre apresentado esfarrapadas desculpas para não vir a São José.

Um dia destes, dei-lhe um aperto (telefônico) daqueles, e o resultado foi o recebimento de uma carta manuscrita, com letra caprichadíssima, que agora compartilho com meus leitores:

Procurei na papelaria da Unifran por um bloco de papel de carta. A balconista me olhou sem entender bem o que pedia. Perguntou aos colegas – ninguém sabia do que se tratava. Nem quis explicar o que era e para que servia, imaginando que responderiam: “Meu, e o computador?” Comprei um caderno (pautado).

Vai aí outro detalhe; quando hoje você começa a escrever a mão uma carta, o pensamento, já acostumado com a velocidade e praticidade do computador, segue muito à frente do mecanismo natural da escrita. De forma que boa parte do que pensei em lhe escrever, sentado aqui à luz de um abajur, já desapareceu. Com efeito, o computador “capta” melhor a integridade de nosso pensamento. Forçando a memória, a boa máquina de escrever também cumpria o mesmo papel. Só que nos dois casos perde-se o contato físico com a escrita do correspondente. E a dor de mão, rapaz! Dá uma boa crônica, não é mesmo?

Bem, comecemos a carta com os dizeres tradicionais: espero que esta vá encontrá-lo gozando de boa saúde junto aos seus. Difícil chegar a estas últimas linhas da página – não há mais apoio para a mão, e a letra sai diferente. Pulo uma linha.

E aí Everton fala das novidades de sua movimentada vida familiar e de sua trabalhosa atividade universitária e de aperfeiçoamento pessoal. Termina assim:

Despeço-me com um forte abraço. Relatei o retorno à escrita a mão de uma carta. Espero resposta em que você relate o receber uma carta como nos bons tempos.

O seu amigo de sempre, Everton.

Então já respondo ao Everton: é muito bom receber carta à moda antiga. Tem muito mais individualidade, personalidade, dá mais provas de amizade.

Tão bom quanto receber a carta manuscrita foi apreciar a fotografia de uma festa  de 15 de janeiro. Everton com sua Elisabete (a fantasiada de cigana) e as filhas do casal, muito lindas. Da esquerda para a direita, Júlia, Thaís, Lígia e Cíntia. Não publicar? Resistir quem há de?

 

29/01/2011
emelauria@uol.com.br)

 

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