Da vida dos sabiás
O pai não é dado a cuidar de pássaros, mesmo porque hoje só se tem por lícito manter em cativeiro espécies importadas, como o canário-do-reino e o periquito-australiano. E pena por crime ecológico é de um rigor de arrepiar. Em outras épocas já houve na velha casa alguns nativos, como cardeal, sabiá, cujas vidas e mortes foram relatadas com sincero sentimento em textos para os quais talvez nem mais existam leitores interessados. O pai do pai tinha prazer em tratá-los e apreciar miúdos lances de suas tristes vidinhas de prisioneiros. O pai não, e se abstém de mexer com pássaros mais por comodismo do que por convicções ecológicas. Mas o fato é que, sendo grande, com árvores frutíferas e flores, o quintal abriga uma porção deles, de beija-flores a pardais, de sabiás a tico-ticos, de bem-te-vis a joões-de-barro. Há uns que nem se sabe como se chamam, talvez almas-de-gato, talvez corruíras. Há outros vistosos, por ali apenas de passagem, empenhados em longas viagens para rumos misteriosos. É bom vê-los e ouvi-los todos, principalmente de manhã e de tardezinha. Gostam da comida e do pouso, havendo mesmo casos de alguns beija-flores que aproveitam com prazer uma boa chuveirada, quando alguém da casa está molhando as plantas com suaves esguichos. Raro é o mamão apanhado intacto, sem o certificado de degustação de algum sanhaço, também apreciador de laranjas. Nunca se viu nenhum deles atacando jabuticabas, petisco apreciado por gambás e saguis em noturnas excursões pelas pontas dos galhos carregados. Mas o tema central deste relato é outro. Alertado pelo filho remanescente em casa, o pai fica sabendo que um casal de sabiás está construindo ninho bem perto de cozinha, no pilar do rancho que abriga antigo tanque de lavar roupa, relíquia do tempo da velhíssima mãe, enquanto disposta e trabalhadeira. Devendo ter escolhido ser veterinário ou agrônomo mas tentando ensinar fatos e lendas para classes que nada querem com nada, o filho remanescente estranha o lugar escolhido pelo casal de sabiás – muito perto do movimento de pessoas, muito perto do telhado, de acesso difícil na etapa de alimentação dos filhotes. Mas em matéria de escolher lugar para nidificar (existe este verbo), sabiá deve entender muito mais do que gente, ainda que ecologista de carteirinha. E assim, entre curiosos e preocupados, pai e filho acompanham a construção caprichada do ninho, os ovinhos postos, as quase três semanas do choco, o nascimento de três feiíssimos filhotes, depenados e de insaciáveis bocas, sempre abertas à espera do pai e da mãe, pressurosos em trazer comidinhas de quinze em quinze minutos. Que fazer? Eles são mesmo pressurosíssimos e os filhotes gulosíssimos.
Se alguém se posta perto do tal tanque, e por isso mesmo perto do ninho, os sabiás fazem ameaças, chilreiam com inesperada energia, voam corajosos sobre as cabeças intrusas. Nos dias de intenso calor, os três filhotes esticam para foram do ninho os pescoços, em busca de ar, mais ar. À medida que os dias passam, aumenta nos dois espectadores a preocupação com a possibilidade de algum deles cair fora do ninho, mesmo sem haver o perigo de gatos atentos abocanharem o incauto. Depois fica-se pensando na difícil manobra que terão de fazer para alçar voo. Por cima e por um dos lados, o telhado; à frente, os três ou quatro fios de plástico dos varais, às vezes tomados por peças de roupas. O pai avalia para si mesmo que vai ser muito complicada a saída deles, talvez mais difícil do que decolar de Congonhas (rodeada de edifícios por todos os lados) ou do Santos Dumont (é tomar cuidado com a pista curta, senão cai no mar, e logo em seguida mudar de rumo, para não bater no Pão-de-Açúcar). Transmite suas apreensões ao filho, que simplesmente lhe diz que eles darão um jeito. Segundo sua previsão, um belo dia começará a revoada, e pronto. Chegado o belo dia, ninguém viu como, os três filhotes decolaram, fizeram parada técnica num fio de arame ali próximo e voaram para a jabuticabeira, onde o pai e a mãe deles os esperavam, certamente com muito menos tensão do que um casal de humanos esperaria o filho à saída da escola, no primeiro dia de aula. De parte do pai, deu-se por encerrado o capítulo do nascimento, sobrevivência e voo-solo dos três sabiazinhos. O filho remanescente ainda os acompanha com olhos atentos. Informa ao pai que da jabuticabeira, uma espécie de parada emergencial, eles rumaram para a mangueira, maior, mais copada, mais protegida até de um gaviãozinho que andou dando uns rasantes e uns pios ameaçadores. Daqui pra frente, o pai fica ciente por boletins diários que os filhotes são submetidos a rápido curso de sobrevivência. Terão ainda algum alimento dado no bico, certamente minhocas e uns bichinhos abundantes num buraco onde se jogam os resíduos de verduras e frutas consumidas na casa. Depois disso, cada um para si e Deus para todos, como se dizia em recuados tempos de muita esperança e maior fervor. Terminada a fase de criação propriamente dita, desfazem-se os fortes vínculos familiares que lhes garantiram a própria sobrevivência. Uma espécie de salutar amnésia se abaterá sobre todos. Pais não reconhecerão filhos, filhos não reconhecerão pais, irmãos não só não se reconhecerão como poderão até tornar-se irreconciliáveis inimigos na disputa de uma companheira ou na demarcação, pelo canto mavioso, do território exclusivo do novo macho dominante. Diferentemente do canário-filósofo inventado por Machado de Assis, que ainda se lembrou vagamente do dono da gaiola onde viveu em longínquas eras, os sabiás nascidos no quintal da velha casa não guardarão lembrança alguma de qualquer pessoa das tantas que apenas lhes turbaram com a simples presença o sossego de um período inicial da vida. Lembrança alguma guardarão dos pais tão zelosos (tão pressurosos!), tão protetores. Não se sabe se expressarão isso de um algum modo em trinado de sutil modulação: “Nada devemos a ninguém. Não pedimos para nascer, nada exigimos, muito menos sacrifícios maternos/paternos. Por nós só foi feito o que a mãe Natureza programou para sabiás, ao longo dos séculos.” E o mais notável de tudo acabará acontecendo também com eles: um belo dia, enlevados pelos calores e perfumes de nascente primavera, eles sentirão o forte apelo dos instintos e farão tal qual os pais, avós, bisavós fizeram, guiados por forças poderosas e cegas. O amor unirá sabiá-macho e sabiá-fêmea, que escolherão um desvão qualquer que julgarem bem protegido, construirão um ninho, aguardarão expectantes o romper de frágeis cascas de ovos, farão revezamento ininterrupto na vigilância do pequeno lar. Nascidos os filhotes, trarão para eles o melhor que puderem e os orientarão no primeiro e arriscado vôo no vestibular da vida. E assim prosseguirá a rotina salutar da Natureza – isso se algum humano (por que não, em nome da paz e da liberdade?) não puser fim a um planeta criado para ter as delícias do paraíso.
28/11/2009
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