ESCREVER É QUE SÃO ELAS!
... Ora, aprende-se uma
língua através da audição e repetição de frases e palavras.
Ensinar a transcrever o som dessas frases para um coerente código
escrito é a grande tarefa da escola.
(Márcio José Lauria autografando o seu livro "Vidro de Aumento")
Pessoas ligadas à palavra, em todas as
circunstâncias, bem que gostariam de receber algum sinal de que suas
mensagens foram sentidas ou interpretadas por alguém. Até de críticas
negativas se acaba gostando, mas a verdade é uma só: poucas vezes o que
falamos ou escrevemos logra respostas dos destinatários em potencial.
Não há o que os comunicólogos chamam feedback ou, em bom português,
retroalimentação.
Que fazer? Parece que nada: é regra
geral, especialmente em matéria jornalística, o que escrevemos no sábado
cai logo no esquecimento, podendo no mesmo dia virar papel de embrulho
ou forração de gaiola. Até Luís Fernando Veríssimo se refere a esse
descaso, quando confessa que nem vale a pena alertar sobre deslize
cometido no texto anterior: ninguém percebeu, mesmo.
Está virando moda criticar com certo
puritanismo o péssimo nível de redação dos estudantes brasileiros. Na
realidade, nem só os estudantes andam escrevendo mal por aqui: os
manuscritos de muito figurão, antes da intervenção da diligente
secretária ou do ghostwriter bem remunerado, contêm impropriedades de
comprometer conceitos internacionais de sapiência; até pretensiosas
teses acadêmicas não resistiriam a exame mais acurado de sua forma
linguística e das propriedades lógicas de seu conteúdo.
Os jornais do Brasil todo se deliciam de
quando em quando com as pérolas colhidas no mar de sargaços dos exames
de qualquer dificuldade, como se redatores e colaboradores dos mesmos
jornais não cometessem suas próprias batatadas. Mas os textos escolares
são as testemunhas atualizadas das consequências do que estamos cansados
de saber – a falta de leitura.
A frase mais execrada na safra recente
dos despropósitos é NO PAIZ ENQUE VIVEMOS, OS POBLEMAS CERREVELAM, quer
dizer: “No país em que vivemos, os problemas se revelam”... Muito mais
do que a comodidade de considerar esse amontoado de palavras como prova
do desconhecimento de ortografia, vale pensar que quem assim escreve só
teve contato com a língua portuguesa em seu aspecto oral, reconheça-se
que muito mais importante do que o escrito.
Ora, aprende-se uma língua através da
audição e repetição de frases e palavras. Ensinar a transcrever o som
dessas frases para um coerente código escrito é a grande tarefa da
escola. Quando a pessoa não lê, não percebe que determinados sons formam
vocábulos autônomos, grafados separadamente: como se ensina no período
de alfabetização e como se fixa pelo hábito de observar o que se lê.
Para quem não lê, portanto, é muito difícil, se não impossível, a
distinção entre enque e em que, ou entre cerrevelam e se revelam. É essa
mesma espécie de dificuldade que leva tantas pessoas a grafarem oque, em
vez de o que, ou apartir, à partir, por a partir. Foneticamente até que
a tripudiada frase que deu margem a este comentário está bem
representada, mas essa representação não tem aceitação na norma culta.
Não é de hoje que se exploram os efeitos
dessas identidades sonoras, caminho aberto aos mal-entendidos, aos
quiproquós, aos trocadilhos. Alunos de muitas de nossas pobres escolas
começam a cantar o Hino Nacional com Virundu, que é como lhes soa
Ouviram do... O Hino da Independência para muitos se inicia com
humorística adaptação fônica: Japonês tem quatro filhos, deturpação de
Já podeis da Pátria filhos... A Canção do Soldado e o Cisne Branco
também mereceram pesadas paródias, aqui impublicáveis.
Apenas a devida atenção ao texto escrito
e a explicação de seu significado acabarão restabelecendo a
fidedignidade do que os autores quiseram transmitir. Quanta gente saberá
o que quer dizer Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo
heroico o brado retumbante? Aliás, quanta gente saberá o que o Hino
Nacional todo quer dizer?
Estes aspectos da má compreensão fônica
interessam particularmente à semântica – cuja grande preocupação é o
estudo da significação das palavras.
Olavo Bilac escreveu de parceria com
Guimarães Passos um livro indispensável a quantos desejassem perpetrar
versos bem escandidos no final do século XIX e começo do XX. Era o
Tratado de Versificação. Pois não é que, internado num hospital, o
grande sonetista de “Ouvir estrelas” teve de enfrentar de Emílio de
Meneses, trocadilhista ferino, a engenhosa interrogação:
– Bilac, tens tratado de ver se ficas
são?
Foneticamente, tratado de ver se ficas
são e tratado de versificação se equivalem.
Agora, que os perpetradores do tipo de
erro comentado exageraram na indigência gramatical, na ignorância de
temas gerais e na incoerência das ideias, isso é verdade.
O eventual leitor descubra a natureza
das impropriedades conceituais, mais graves do que as formais, cometidas
por alunos concluintes do ensino médio:
Os lagos são formados por bacias
esferográficas.
O problema é ainda maior se tratando de
camada Diozoni.
Não preserve apenas o meio ambiente, mas
sim todo ele.
O fenômeno Euninho.
É mesmo para se implorar como se fazia
no Portugal de outros tempos, nos momentos de grandes apuros:
– AQUI DEL-REI! AQUI DEL-REI!
28/10/2017
emelauria@uol.com.br
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