Lembrando Machado de Assis

 
Enterro de Machado de Assis. Euclides da Cunha está próximo do caixão, lado direito do observador.
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Há cento e cinco anos, na data de amanhã, morria no Rio de Janeiro o grande Machado de Assis. Nascera na mesma cidade a 21 de junho de 1839.

Felizmente, para bem marcar a posição que ele merece ter na literatura nacional, muita gente não gosta dele nem como romancista, nem como contista, muito menos como poeta, cronista e teatrólogo. A verdade é que não se aprecia impunemente um autor de valor incomum, que exige do leitor profunda adesão intelectual.

De acordo com todos os compiladores de bibliografias críticas de autores brasileiros, este mulato, gago e epilético é o nosso escritor mais estudado, tanto pelos historiadores da Literatura, pela crítica jornalística quanto pelos pesquisadores universitários.

A página sobre Machado, no site da Academia Brasileira de Letras, coloca à disposição do estudioso material tão copioso, que não será exagero dizer-se: uma vida toda não daria para apenas se ler tudo aquilo.

O que se escreveu a respeito de Machado de Assis vai do muito favorável ao francamente condenatório. Ele foi acusado de muita coisa, tanto de indiferença aos grandes problemas sociais brasileiros, a escravidão negra em primeiro lugar, como de ingratidão a seus familiares de origem humilde.

Lembro-me a esse propósito de crônica do hoje esquecido Vivaldo Coaracy, que se assinava V. Cy, no Estadão, em que reproduz o que lhe contara, fazia muito tempo, um escritor carioca, íntimo de Machado. Este o convidara a um passeio de carruagem de praça, um tílburi, não lhe informando aonde iriam. Acabaram subindo a um dos tantos morros que circundam o Rio de Janeiro. A certa altura Machado pediu ao cocheiro que parasse e o esperasse. O amigo acompanhante fez menção de sair da carruagem, mas foi convidado a ficar nela, aguardando um pouco. Machado saiu sozinho, tomou um dos atalhos que subiam e demorou-se perto de meia hora. Ao regressar, nada disse ao amigo, que por sua vez lhe respeitou o silêncio. Foi apenas quase ao término da viagem que Machado rompeu o mutismo:

- Fui a um velório, velório de uma mulher que me serviu de mãe...

Tratava-se de Maria Inês, a segunda mulher do pai de Machado. Órfão de mãe em tenra idade, M. de A. encontrou nela muito afeto e muito carinho. No entanto, pelo tom da narrativa de V. Cy, fica claro que o grande escritor não falava abertamente de suas origens humildes, do pai, da madrasta, da infância pobre, dos estudos esporádicos e informais.

Pensando-se bem, nos dias de hoje não haveria motivo para alguém ocultar esses aspectos de privações que, ao contrário, só enobrecem e valorizam os esforços despendidos em favor da elevação econômica, moral e intelectual.

Enquanto o traço dominante na crítica literária foi o biográfico, o histórico ou o impressionista, não poderia mesmo deixar de haver grande disparidade de opiniões, porque também os estudiosos, mal apetrechados para análises isentas, dividiam-se, como até hoje se divide o público leitor: ou consideravam M. de A. um dos maiores escritores da língua (foi o caso de José Veríssimo), ou apenas não suportavam  seu estilo, seus temas, sua maneira incomum de encarar nossos fatos históricos e nossas mudanças sociais. Essa vertente crítica por vezes rancorosa teve como principal nome Sílvio Romero, para quem Machado era falto de profundidade e pretensioso no modo de escrever. Tempos depois, Agripino Grieco, ferinamente, também investiu contra o autor de seu mais completo desagrado.

Foi preciso que os estudos críticos avançassem pelos caminhos mais consistentes do esteticismo, do formalismo, da análise estrutural do texto, para se formar em torno da obra de Machado uma como unanimidade. É que se pôde, menos arbitrariamente, separar o criador e suas criaturas, considerar seus romances e seus contos como páginas de superior elaboração, dotadas de estruturas complexas, bem diferentes do terra a terra das composições de Alencar, Macedo, Bernardo Guimarães e outros então campeões da fácil preferência popular. Além disso, ficou evidenciado que a frase machadiana é de riqueza ímpar, a ponto de ser possível a exemplificação dos principais fatos da língua portuguesa com base nos seus textos. Nenhum outro autor brasileiro contemporâneo seu explorou tanto as virtualidades e possibilidades de nosso idioma quanto Machado de Assis.

Minha inclusão entre os admiradores do grande escritor se deveu a Hersílio Ângelo, um machadiano de “boa casta”, para usar a  elogiosa classificação que o próprio Machado aplicou a um personagem seu. Malgrado a  indiferença ou falta de alcance da maioria dos alunos, uma atenta minoria deixou-se impregnar pela consistente admiração que o exigente mestre votava ao escritor fluminense, expressa nas aulas que ministrava no curso Científico do Colégio Euclides da Cunha. Ele estudava em profundidade a obra machadiana, pena que pouco publicando dos seus estudos. Deixou material esparso pelos jornais da cidade, por um número especial da revista estudantil que, apesar de denominada “O Euclidiano”, tratou apenas de Machado, e uma primorosa análise literária do soneto “A Carolina”, publicada com destaque pela Revista do Instituto Nacional do Livro, texto que pretendo brevemente reeditar, quando menos como exemplo da seriedade com que se tratava então um assunto literário na escola secundária.

Dessa adesão inicial a um estudo permanente da obra de Machado e de seus críticos para mim foi um passo natural, que na verdade continua até hoje. Primeiro, os romances da fase romântica (Helena, Iaiá Garcia, A mão e a luva); depois  os romances do realismo psicológico (Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba); o triste livro de saudade em que evocou seu longo convívio com a esposa Carolina (Memorial de Aires); os poemas reflexivos ou de evocação (“Uma criatura”, “A mosca azul”, “A Carolina”); os contos sutis, cheios de subentendidos e segundas intenções (“Missa do galo”, “O alienista”, “A cartomante”, “Ideias de canário”), as crônicas, a correspondência, o teatro, a crítica literária...

Do debruçar interessado e sem pressa sobre esses textos, voltava eu informado da técnica de composição, da urdidura dos enredos, da fixação dos temas, da caracterização das personagens, da discussão dos principais fatos linguísticos. Encontrei em Machado o escritor profundo, o modelo da boa linguagem, capaz de unir o rigor da frase clássica, que ele conhecia bem, com a fluidez de um abrasileiramento que tornou sua escritura “moderna”.

A admiração por Machado, além de não ser para mim atitude passageira, rendeu-me bons proventos. Por uma dessas felizes conjunções do acaso, em meu concurso de ingresso no magistério estadual pude por sorteio discorrer, na prova de erudição, sobre um tema de meu particular agrado – as personagens femininas nos romances de Machado de Assis.

Estudar Machado de Assis nunca foi um modismo, desses que nascem com força, sobrevivem algum tempo e depois desaparecem sem deixar marcas sensíveis. Ao contrário, o tempo só vem demonstrando que um autor da sua profundidade temática, sutileza e penetração psicológica como que destoa do pobre meio cultural em que despontou. Enquanto brasileiros e portugueses ainda se comprazem com a anedota pesadona, com a chalaça, Machado de Assis, no final do século XIX, oferecia a seus leitores um humour à inglesa, refinado e inesperado, que ele foi buscar em fontes inacessíveis à quase totalidade dos autores nacionais de sua época.

Daí as revelações, comuns até hoje, de tantos leitores que só na maturidade e por conta própria “descobrem” o velho Machado. Surpreendem-se e se encantam com a enganadora simplicidade de sua frase, caem  no fascínio da sua Capitu, a ponto de travarem cerradas discussões a respeito de ela haver traído, ou não, o pobre Bentinho, como se Capitu e Bentinho tivessem superado a simples condição de criaturas ficcionais.

Mais do que desses valores de ordem linguística ou literária os textos machadianos são boas fontes de estudos psicológicos. Karl Scheide, doutor em Psicologia pela Universidade da Califórnia e responsável por cursos de pós-graduação em Psicologia Social, vem com declarações inesperadas:

- O psicólogo brasileiro mais criativo, com mais visão das coisas, é Machado de Assis. Seus romances têm nível psicológico ótimo. O grande conto O alienista deveria ser leitura obrigatória para todos os psiquiatras. Nas minhas  aulas de motivação, nos Estados Unidos, uso Memórias póstumas de Brás Cubas, onde Machado demonstra grande conhecimento dos valores humanos.

Mas, conhecedor do espírito brasileiro, Scheide ressalvou:

- Não sei se poderia usar Machado de Assis num curso de Psicologia aqui no Brasil, sem ser alvo de zombarias.

A verdade é que, mesmo com a passagem dos séculos, no futuro a alma humana continuará vivendo os mesmos dramas que Machado catalogou na rica variedade de tipos que criou e deu vida através da palavra, apenas.

 

28/09/2013
emelauria@uol.com.br

 

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