Antes que me esqueça
RECONHECENDO PESSOAS No velório do antigo colega de ginásio, vira pensamento impróprio aquela tentativa de fazer as contas sobre a quanto chegaria a soma das idades dos presentes. Coisas de milhares de anos, sem dúvida. A par da notória predominância de idosos, aqui e ali se formam grupos de moças e rapazes, tão altos, tão saudáveis, tão de bem com a vida. Faz-se grande esforço para o reconhecimento das fisionomias que, quando jovens, agora ali possam estar soterradas pelas rugas, pelas mágoas, pelas intervenções plásticas, pela maquiagem pesada. Muitas daquelas faces podem retornar, sem grande esforço da imaginação, à plenitude de décadas passadas. Foram belas, algumas belíssimas. Aí, senta-se a meu lado um provecto senhor com invejável cabeleira, toda branca. Conversa vai, conversa vem, ele é sobrinho do finado e reside em cidade próxima. - Estudei aqui por uns tempos, isso já vai muito longe... Não deu certo a tentativa dele de estabelecer alguma ligação entre os nossos passados, até que me perguntou se eu era Bertocco, porque ele tinha tido um colega Bertocco que vagamente se parecia comigo. - Sou Bertocco por parte de mãe, e Lauria por parte de pai... - Lauria... Sabe que eu tive um professor Lauria, no Ginásio Rio-Pardense, isso lá por 1953, 54? O senhor chegou a conhecê-lo? Pronto... Mais uma vez tenho de me desculpar por haver lecionado por mais de meio século! Ele, do alto dos seus setenta e quatro outonos, ficou sinceramente comovido com o inesperado reencontro, fez vaga menção de me abraçar, mas eu me mantive firme e não dei prosseguimento àquela sessão nostálgica.
BUSCANDO O RUMO Era no remoto tempo em que os ônibus do Nasser paravam num bar à beira da estrada, nas proximidades de Mojimirim. Como só havia uma pista, tanto os que iam a São Paulo quanto os que vinham de São Paulo ali davam rápido descanso a seus passageiros. Um dia estávamos ali, comendo qualquer coisinha, Marina e eu. Então demos de cara com o envelhecido Dr. Abdiel Cavalcânti Braga, engenheiro e ex-diretor do “ Euclides da Cunha”, nosso sempre “ginásio”. Prestamos a ele os respeitos que bem merecia e ficamos proseando enquanto não éramos chamados para prosseguir viagem. - Vocês estão indo ou estão de volta? – perguntou o velho professor de Matemática, que já apresentava alguns sintomas de confusão mental. - Estamos voltando para São José. - Não estamos no mesmo ônibus, estamos? - Não, não estamos. - Isso quer dizer que eu estou indo a São Paulo, não é mesmo? (Aquela simples dedução lhe devia ter custado muito mais esforço mental do que a demonstração da fórmula de extração de uma raiz quadrada.) Eu o tomei pelo braço e o conduzi até a porta do ônibus com destino à capital. Não sem antes confirmar com o motorista se o Dr. Abdiel era mesmo passageiro daquele veículo...
RECOMENDANDO CUIDADO COM O PRESENTE Eu não esperava que o Prof. José Germinal Artese, mestre do desenho e da pintura, levasse em consideração o convite que Marina e eu fizéramos a alguns amigos do “Euclides da Cunha”. Assim, foi uma boa surpresa quando ele me entregou seu presente de casamento, isso em 1958 d.C. Além de meu ex-professor e logo depois colega, Germinal era amigo da família de Marina, principalmente por causa do amor dele e de meu sogro Domingos Parisi ao violino. Isso explicaria muito mais o belo óleo, já emoldurado, que me entregou.
Incapaz de perder qualquer oportunidade de destilar sua ironia (e seu desencanto) com as coisas do matrimônio, ele me alfinetou: - Olhe, duvido que casamentos durem tanto quanto uma boa tela bem encaixilhada. E assim, Marina e eu ganhamos a sua bela visão de um trecho do rio Pardo, com águas barrentas, margens verdes e céu azul, daquele azul que se transformou em marca inconfundível do pintor. As previsões pessimistas de Germinal (e não só de Germinal) não se confirmaram: nosso casamento durou mais de cinquenta anos e terminou pelo modo mais natural – a morte de um dos cônjuges. O quadro de Germinal resiste mais. Está aqui em casa, íntegro na beleza das pinceladas algo impressionistas e no brilho das cores imutáveis.
LIDANDO COM OPOSTOS Era nos recuados tempos em que a cidade não tinha, reconhecidamente, nenhum hotel que se prestasse à hospedagem de pessoas de certo trato. Na Semana Euclidiana, especialmente antes da criação da Casa de Cultura (1946), era praxe que, a pedido do Dr. Oswaldo Galotti e seus companheiros da Comissão de Festejos Euclidianos, as famílias de mais posse e melhores acomodações recebessem conferencistas, visitantes ilustres. O incidente que agora relato ocorreu bem depois de 1946, porque algumas pessoas ainda se dispunham a receber hóspedes merecedores de mais atenção e conforto. O Prof. Hersílio Ângelo, meu mestre e amigo da vida toda, não poderia mesmo deixar sem prazeroso acolhimento o misto de sociólogo e crítico literário Antônio Cândido, uma de suas admirações intelectuais, especialmente por causa do inovador estudo abrigado no ainda hoje notável livro Formação da literatura brasileira. Antônio Cândido, de origem anarquista, homem reconhecidamente de esquerda. Pois não é que, numa daquelas peças tramadas pelo destino, também seria hóspede de Hersílio e Odette outro brilhante intelectual – Genésio Pereira Filho, nada menos do que genro e continuador do pensamento de Plínio Salgado, o principal nome do integralismo direitista brasileiro? Ao saber da possibilidade desse encontro de mentalidades tão antagônicas, Hersílio pediu socorro ao Dr. Galotti, mas Antônio Cândido antecipou-se: avisou aos dois que imediatamente após a conferência que proferiria, iria dormir em Poços de Caldas, onde tinha amigos e correligionários que certamente não lhe negariam pouso...
INOVANDO EM MATÉRIA PEDAGÓGICA E MUDANDO DE VIDA O mesmo Dr. Abdiel Cavalcânti Braga, catedrático de Matemática, como se dizia com orgulho então dos professores secundários aprovados em concurso, mais uma vez iria assumir a direção do “Euclides da Cunha”, afastando-se das salas de aula. Isso em 1949. Para substituí-lo naquela emergência, foi convidado um brilhante ex-aluno da escola, formado em Química Industrial, com estágio nos Estados Unidos. Ou seja, com nada que o recomendasse como professor de Matemática, a não ser a justa fama de inteligentíssimo. E assim começou a grande guinada na vida de Itagiba d’Ávila Ribeiro, que tomou gosto pela matéria, que soube como lidar com os alunos, a ponto de permitir aos mais tímidos ou menos propensos àquelas misteriosas demonstrações de teoremas fazerem por escrito os temidos exames orais... Eu mesmo fui beneficiado pela generosidade do novato professor, eu e meu sempre lembrado colega Benedicto de Araujo Netto, o Netinho, então alunos do mais que duro curso Científico... Daí nasceu entre nós três uma duradoura e proveitosa amizade, que teve momentos dos mais inesperados quando cursamos, anos depois, a Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. O canudo de bacharel pouco mudou minha vida e a de Netinho. Ele se firmou como oficial de justiça. Eu guardei o diploma num baú qualquer, só vindo a aproveitá-lo décadas após, quando Celso Ribeiro da Silva, diretor da Faculdade de São João da Boa Vista, me convidou a dar aulas nas classes do período vespertino. Itagiba não. Depois de ser chefe de gabinete de Herbert Levy, secretário da Agricultura do estado de São Paulo, foi aprovado no concurso para a magistratura. Exerceu-a com brilho e capacidade. Logo depois de aposentado, sumiu misteriosamente. Seu carro, incendiado, foi encontrado nas proximidades daquele mesmo bar da beira da estrada e nunca mais se teve notícia dele.
28/08/2010
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