Causos do CCBF
Para quem ainda não sabe, CCBF é a sigla do Centro Cultural Batista Folharini, durante muito tempo confortavelmente instalado na Rua Dr. João Gabriel Ribeiro. Em suas movimentadas sessões, falava-se de tudo (de preferência falava-se bem), ficava-se sabendo de (quase) tudo. Para infelicidade geral da nação, o CCBF está hoje instalado na Rodoviária, lugar quase inacessível para a maioria de seus associados, que vão bem na descida e empacam na subida. Uma perda cultural imensa, segundo a unanimidade de seus frequentadores e de seus antigos vizinhos, que hoje se ressentem daquele clima de intensa agitação intelectual, agora irremediavelmente perdido.
O SUJEITO (IM)PREVIDENTE Não demoraram a perceber que o casamento deles não ia bem. Tanto é que a separação foi consensual, sem maiores dramas. Cada um para seu lado, e pronto. O homem, trabalhador dos bons, logo se ajeitou com outra, que o ajudava muito em sua tenda de pequenas vendas e compras. O negócio ganhou vulto, tudo ia de vento em popa. Ideia inevitável: comprar uma casa, nada de continuar pagando aluguel pelo barraco na avenida onde antigamente os trens passavam. Escolhida a casa, bateu nele a dúvida cruel: se o imóvel fosse registrado em seu nome, sua legítima mulher poderia pleitear metade dele, no caso de falecimento do ainda legítimo marido. Solução que lhe ocorreu numa noite de insônia: colocar a atual companheira como proprietária única da casa. Já que viviam tão bem, entre os dois não haveria problemas. Não houve mesmo, enquanto ela, a companheira, não resolveu morrer, assim sem mais nem menos. Morreu sem ter ficado doente, coisa de infarto fulminante. Ele chorou muito aquela morte fora do programa; menos, porém, de quanto chorou ao receber dos irmãos da falecida a intimação. Que saísse logo da casa, legitimamente herdada da pranteada irmã!
O PODEROSO PADRINHO Certo, ele gostava mesmo dum carteado no clube. Sempre depois de ter cumprido todas as obrigações no cartório. De gênio expansivo, tinha um mundo de afiliados de batismo, de crisma, de casamento. Daí a falta de surpresa quando recebeu mais um convite para crismar o filho de um velho conhecido. Combinaram tudo direitinho, o encontro na igreja, etc. O problema foi que o bispo só poderia estar na cidade no domingo à tarde, exatamente o melhor dia e a melhor hora para o pôquer no clube. Não deixou de ir ao jogo, certo de que na hora necessária ele daria um pulo até a igreja, situada ali pertinho. De fato, deu o pulo até a igreja, mas tudo ali estava terminado. A um canto, desenxabido, seu amigo e quase compadre acompanhando o rapazinho, todo constrangido com o descaso do quase padrinho. - Olhem, não fiquem preocupados. Vou ver se ainda encontro o bispo. Mais perto do que o clube, a casa paroquial. No terracinho lá estavam papeando o bispo e o vigário, que de vez em quando também arriscava umas incursões no tentador mundo das damas, valetes e reis. Chegou todo respeitoso, explicou a situação e recebeu do bispo a esperada negativa. Aí lançou mão do argumento guardado na manga do paletó: - O que é que se vai fazer? É mesmo uma pena, a crisma do menino fica pra outra oportunidade. É uma pena , porque minha tenção era não só dar um dinheirinho pro rapaz, mas também para as obras de reforma da igreja... O vigário olhou pro bispo, que olhou pro vigário. - Tudo bem, tudo bem. Em consideração à amizade do Sr. com o vigário aqui, vou abrir uma exceção. O rapaz está onde? - Lá na igreja, todo sem graça. - Então vamos todos pra lá resolver logo essa trapalhada sua. O rapazinho foi crismado, o padrinho cumpriu suas promessas, todos ficaram muito felizes. Mais feliz ainda a família do novo compadre, que recebeu duas fichas daquelas bem grandes, de alto valor, coisa de duzentos cruzeiros cada uma. - Quando tiver um tempinho, compadre, vá até o clube e peça a alguém que lhe pague o valor dessas fichinhas.
O PEIXE ONÍVORO, OU SEJA, QUE ACEITA TUDO Sabe onde ele gostava de pescar? Perto de um cano do esgoto que se despejava no rio Pardo. E foi lá que teve forte emoção ao fisgar um mandi daqueles amarelos, de barba e ferrão, com mais de dois quilos. Com um misto de espírito esportivo e de exibicionismo, não deixou de dar uma passadinha pelo bar que frequentava . - Que beleza de peixe! Quer vender? Eu lhe pago vinte reais. - Não, este vai ser pra consumo da família... Em casa, ao se preparar para a limpeza do peixe, uma surpresa: havia algo entalado na boca dele. O que era? O que não era? Nem é bom falar, mas ele ficou de estômago enjoado, abriu o mandi, tirou aquele corpo estranho e o jogou no vaso sanitário. Limpou no capricho o peixe, deu uma desculpa esfarrapada à mãe e foi ao barzinho. - Olhe, disse ao dono do barzinho, resolvi lhe vender o peixe. Aceito os vinte reais oferecidos. - Vinte reais não, eu lhe pago vinte e cinco porque ele já está limpo. Bem que ele teve uma ponta de remorso, que rebateu ao primeiro gole de uma boa cachaça emborcada ali mesmo.
MÉTODO INFALÍVEL DE FECHAR NEGÓCIO ENROLADO Era um dos componentes de uma tristemente famosa 3.ª série ginasial do “Euclides da Cunha”, daquelas brabas, dos anos quarenta. Dela, segundo a notável observação de outro componente, ainda vivo, saíram alguns doutores e diversos presidiários. O protagonista deste causo, ocorrido anos depois, pertencera ao segundo grupo – o dos futuros presidiários. Filho único, cheio de mimos e afagos, não se deu bem no casamento. Sentiu muito a morte prematura do pai, e menos a morte anunciada da mãe. Herdou umas coisinhas, mas principalmente a boa casa da família. Nem será preciso dizer que, viciado no jogo, achou muito natural vender a casa, que compradores não faltavam. Fechou negócio a prestações com um sujeito bom pagador, que só pôde comprá-la em dez pagamentos. O preço final foi acertado. Pagas as dez promissórias, que saíram pelo ralo nas mesas de jogo, chegou a hora de se passar a escritura. - Eu só passo a escritura se você me pagar o valor de mais uma prestação... O comprador, temeroso de perder o dinheiro e o bom negócio feito, submeteu-se à vontade do vendedor, tomando dinheiro emprestado a um tio, velho negociante de gado, homem muito sério e muito ríspido. Na hora de passar a escritura, outra exigência: - Eu só passo a escritura se você me pagar outra parcela... O comprador achou aquilo um desaforo e foi se aconselhar com o tio financiador. - Pode deixar comigo. Vou falar com aquele safado. Foi e o encontrou muito aplicado na mesa-verde. - Quero falar com você. - Agora eu não posso, estou numa parada grossa. - Não pode? Pode sim! Se não for por bem, vai a chicotadas. E bateu com um grosso rabo de tatu na mesa de jogo, espantando os parceiros, espalhando fichas e esparramando cartas para todos os lados. E lá se foi o nosso ex-colega caminhando pelas ruas, sempre acompanhado muito de perto pelo seu algoz, de rabo de tatu em punho, e em cima de vistoso cavalo. No cartório, em completo silêncio, nada mais exigiu e assinou depressinha a escritura de compra e venda de imóvel situado na rua tal, número tal.
28/07/2012 |