REFRESCANDO A MEMÓRIA
Mim nada faz Foi minha saudosa professora de quarto ano primário do Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues (agora às vésperas do centenário de fundação) que ensinou a regrinha infalível: “Mim” nada faz. Dona Laudelina de Oliveira Pourrat -- que Deus a tenha! -- ensinava coisas definitivas. Regra infalível mesmo. Se você tiver dúvida entre eu e mim, veja se logo em seguida vem um verbo. Em caso positivo, empregue “eu”; em caso negativo caberá “mim”. Compare: Não vá sem mim. Não vá sem eu mandar. Sem mim nada podeis. Nada sabem sem eu ajudar.
Entre mim e ti E não “entre eu e tu”. O TV Globo é a grande responsável pela generalização incorreta de se empregar o pronome eu, onde caberia mim . Frase correta, gramaticalmente considerada: “ Nada existe entre mim e você”, ou “Nada existe entre mim e ti”. Frase com o padrão Globo de qualidade: “Nada existe entre eu e você”. Eu, tu, como pronomes pessoais retos, só exercem funções de sujeito e de predicativo do sujeito; “Entre eu entrar e tu saíres passaram-se horas”. “Tu não és eu nem eu sou tu”.
“As mais preferidas do Brasil” Comprei numa loja em São Paulo um CD de muito boa música brasileira. Se eu tivesse prestado a devida atenção ao título na capa, talvez não o tivesse comprado: o adjetivo preferido significa mais querido, mais desejado. Logo, é redundância dizer-se mais preferido, o mesmo que mais mais querido, mais mais desejado. O CD deveria chamar-se “As preferidas do Brasil” e não “As mais preferidas do Brasil”. Na verdade, ninguém é obrigado a saber que preferir vem de praeferre, onde prae significa “mais”, mas qualquer pessoa medianamente atenta à boa prática da linguagem tem de evitar construções como: “Prefiro mais ler do que escrever”. O correto é Prefiro ler a escrever. “Prefiro mais chá do que leite”. Quem prefere prefere uma coisa a outra: Prefiro chá a leite.
O perigoso verbo “assistir” Toda língua está sujeita a uma lei poderosa, a da uniformização por analogia. Ninguém, sem estar muito ligado ao que diz ou escreve, achará mal construída a frase: “Convidado a assistir os jogos, assisti-os com prazer”. No entanto, aí está um prato cheio para vestibulares ou concursos em que o número de candidatos seja maior que o número de vagas. Quem não estiver atento e informado com bons argumentos não desconfiará da inocente frase e cairá na esparrela infalível para nove entre dez candidatos. Dizem os gramáticos que o verbo assistir, no sentido de estar presente, constrói-se com a preposição a e repele como complemento verbal as formas pronominais lhe, lhes, exigindo a ele, a ela, a eles, a elas. Isso quer dizer que a frase tida como inocente na verdade deveria ser: Convidado a assistir aos jogos, assisti a eles com prazer. Alguém dirá com justa razão que ninguém fala ou escreve assim. Na verdade, quase ninguém fala ou escreve coloquialmente assim, mas em todo concurso o que sempre se propõe são questões cuja solução a maioria não sabe. Bons escritores, bons professores, bons jornalistas também sabem construí-la como manda o figurino. Outra coisa: como o verbo empregado corretamente não é transitivo direto, não poderá ser empregado na voz passiva. Assim, uma frase como “O jogo foi assistido por grande público” é tida pelos fiscais da língua como imprópria para o consumo... Além desse complicado sentido de estar presente, o verbo assistir tem outras acepções: 1. De prestar auxílio, socorrer, em frase como “O médico assiste (a)o doente”. 2. De caber, competir: “Não lhe assiste o direito de reclamar”. 3. De morar, residir (construção antiga): “Onde é que você assiste?”. Este emprego está muito vivo na linguagem rural: “Onde é que você asseste?”
Sub seguido de hífen Nada existe mais ilógico do que o emprego do hífen em português. Saber se as palavras começadas com pre se escrevem juntas ou separadas já é trabalho para o Super-Homem, supersensível e super-real. Pré-imaginar, mas preconceber, pré-industrial, mas preestabelecer... E sub? Só admite hífen, segundo a ortografia oficial, se a palavra seguinte se iniciar por b ou r: sub-bibliotecário, sub-bosque, sub-reptício, sub-renal. O resto, tudo emendado: suboficial, subalimentado, subsolo, subumano (!)...
O maltratado verbo “caber” Os maus tratos começam com a conjugação: eu caibo, tu cabes, eu coube, tu coubeste, ele coube, eu cabia, se eu couber, que eu caiba... Geralmente o sujeito deste verbo vem posposto a ele: Couberam três pessoas no banco. O verbo no plural concorda com seu sujeito “três pessoas”. O povo não faz a devida concordância, daí serem comuns, até onde menos se espera, frases errôneas assim: “Cabe alguns reparos”, “ Vai caber cinco caixas no depósito”, “Coube-me diversas tarefas”. Construções gramaticalmente corretas: “Cabem alguns reparos”, “Vão caber cinco caixas no depósito”, “Couberam-me várias tarefas”. Às vezes o sujeito de caber é uma oração toda: “Coube-me ornamentar o salão”. Pergunta: O que é que me coube? Resposta: “Ornamentar o salão” – sujeito do verbo caber representado por uma oração infinitiva subjetiva.
Batizar, catequizar Não é correto explicar que a grafia das duas palavras em destaque seja uma exceção, porque elas “derivam” de batismo e de catequese que não têm z. Na verdade estes dois verbos vieram do grego, onde já se escreviam com o correspondente ao z latino: baptízein e katechízein. Significam, respectivamente, mergulhar e instruir. Para se saber se as palavras terminadas em - i (s,z)ar se escrevem com s ou z, é preciso verificar se o sufixo verbal é -ar ou -izar. As que apresentam - izar serão com z: realizar (de real), fiscalizar (de fiscal), civilizar( de civil), avalizar (de aval). As terminadas em -ar se escreverão de acordo com o termo que lhes deu origem. Assim: paralisar (de paralisia), analisar (de análise), bisar (de bis), cicatrizar (de cicatriz), envernizar (de verniz).
Cuidado com “querer” e “servir”! O verbo querer tem dois sentidos – desejar e amar. No primeiro deles, é transitivo direto: “Querer outro benefício”, “querer a namorada”, “querer um bom emprego”. No segundo, é transitivo indireto: “Eu lhe quero bem”, “querer à namorada” “querer ao próximo”. Numa frase como “eu te quero”, nem o contexto dirá se o namorado deseja a namorada ou a ama. Quase sempre, as duas coisas... Observe-se a frase: “ A criada o serve, mas não lhe serve”. O verbo servir está empregado em dois diferentes sentidos, primeiro com objeto direto e depois com objeto indireto: A criada presta serviço ao patrão, mas não convém a ele...
Advertência final Se há papel que eu detesto exercer é o de censor do que os outros falam ou escrevem. Daí a segura afirmativa de que estas anotações não têm nenhum endereço certo, destinando-se apenas ao esclarecimento de quem sente necessidade de estudar com certo afinco esta nossa nada fácil língua. Sempre haverá um ou outro leitor mais atento que tire delas algum proveito.
28/04/2007 |