Da memória afetiva
(Foco em 1941-42)


...o Cine Theatro Colombo, que mantém o aspecto.
 

- O município de São José do Rio Pardo era bem maior do que hoje. Estudamos no terceiro ano os seus limites e sabíamos que suas terras se confrontavam com Minas Gerais. A atual Divinolândia, que faz divisa com Poços de Caldas, era distrito nosso e chamava-se Sapecado, antes Espírito Santo do Rio do Peixe. Quando da criação da freguesia de São José do Rio Pardo, ela dependia da matriz do Rio do Peixe.

Em 1928, já se havia emancipado o distrito de São Sebastião da Grama. Dos primitivos mil quilômetros quadrados de extensão do município, sobraram hoje uns quatrocentos.

- Autoridades de município em 1941:  prefeito nomeado, Aurino Villela de Andrade. Secretário da Prefeitura: Sebastião José Rodrigues. Juízes, promotores e delegados de polícia ficavam por longo tempo na cidade. Alguns, mais de dez anos.

- Em 1937, o presidente da República desde 1930, Getúlio Dornelles Vargas, criador do Estado Novo, havia mandado fechar todas as casas legislativas: Senado Federal, Câmara dos Deputados, assembleias estaduais e câmaras municipais.

-Não havia governador, mas interventor federal. Em São Paulo, o de 1941 chamava-se Fernando Costa. Só o de Minas Gerais manteve o título e virou nome de cidade: Governador Valadares.

- Estudava-se no Grupo Escolar Dr. Cândido Rodrigues, cujo diretor era o Prof. Edésio Monteiro de Oliveira, um senhor baixo, gordo, de voz rouca, que usava sempre ternos de linho branco.

Em 1941, no terceiro ano do ensino primário, minha professora era D. Isaura de Paiva Manita; no ano seguinte, D. Laudelina Gomes de Oliveira, que teve como nome de casada Laudelina de Oliveira Pourrat (que se pronuncia purrá).

- Lugares bonitos da cidade: o jardim da Praça XV de Novembro, que tinha duas árvores imensas, uns pinheiros enormes, muitos canteiros floridos e um coreto de madeira, onde aos domingos e feriados  tocava uma banda de música. Havia duas que se rivalizavam – a União e a Lira. Outro lugar bonito: a ilha de São Pedro com sua ponte pênsil reconstruída. A anterior havia sido desmantelada pela enchente de 1929, com as águas do rio Pardo chegando quase aos trilhos, nas proximidades da estação ferroviária. Mais um lugar bonito: o Jardim Artístico, que o povo já chamava de Jardim do Artese. Ocupava toda a área da atual Praça dos Três Poderes e fora o cemitério da cidade até 1913. Nem todos os ossos foram trasladados para o cemitério novo, tanto que na construção dos prédios da Prefeitura, Câmara e Fórum, se encontraram  muitos deles.

- Cinemas eram dois: o Cine Pavilhão 15 de Novembro, na praça central e com teto de zinco; o Cine Theatro Colombo, que mantém o aspecto. Em dias comuns era uma sessão apenas e muitas vezes os dois exibiam o mesmo filme. O Colombo tinha clientela mais chique e por isso começava meia hora mais tarde. Uma pessoa levava para o Colombo os rolos do filme já passados no Pavilhão.

- Só havia uma paróquia na cidade, sob a rígida direção do monsenhor  Guilherme Arnould, um tipo de alemão severo e astrônomo amador. Sofreu muito quando, certamente pela idade avançada, foi substituído por um padre novo, franzinho, fumante, que gostava de andar sem batina, para escândalo de beatas e beatos: Adaucto Vitali, de saudosa memória.

- Clubes eram dois: o Rio Pardo, de 1914, e a Associação, de 1930. Rivalidade em tudo. Grandes brigas. Inimizades de vidas inteiras. Um nem pisava na calçada do outro. A sede social do Rio Pardo ficava num belo prédio construído pela Maçonaria, na Rua João Pessoa (Francisquinho Dias), hoje demolido, com terreno ocupado por um estacionamento. A da Associação ficava onde está o Banco Santander. Ali por perto havia outro clube chamado Ao Ponto, com seu luminoso de tantas lâmpadas. O estádio da Associação era muito bonito e tinha uma grande novidade: arquibancada coberta e com assentos de madeira. O do Rio Pardo, chamado pelos desafetos de pastinho, só bem mais tarde teve arquibancada e alambrado. Antes, pontiagudas ripas de madeira  cercavam o gramado. Os assistentes podiam se abrigar do sol inclemente procurando a sombra de um bambual ou de um bosque de eucaliptos.

- As ruas todas eram de terra batida, com sarjetas de pedras. No tempo da seca, a Prefeitura mandava irrigar o centro da cidade com um caminhão-tanque. Na verdade, havia um trecho de duas quadras calçadas com paralelepípedos:  começava no palacete da família Oliveiros Pinheiro, passava pelo Hotel Brasil e ia morrer na Campos Sales. Só. A Siqueira Campos, onde moro desde 1939, era uma verdadeira estrada, com muita poeira, muita carroça, cavalos e cavaleiros e umas boiadas imensas  de vez em quando.

- Defunto se velava em casa e se fornecia bebida e comida a quem enfrentasse o calor, o frio, o descômodo das longas madrugadas de vigília.  Antes do cemitério, o corpo do católico era levado à igreja para ser encomendado pelo padre.  Cortejo a pé, com homens se revezando no carregamento do caixão mortuário, os sinos dobrando tristemente, se o finado fosse de certa importância. Não raro, os velórios se transformavam em alegres bate-papos, com casos extremos de até se formar um carteado para ajudar a passar logo a vigília. Houve gente expulsa por familiares de mortos assim desrespeitados.

- A agência do Correio ficava bem no centro, no local onde foi até pouco tempo a Drogaria d’Osmar. O carteiro de nossa rua era o Sr. Zequinha Guimarães, que passava por aqui no fim de seu longo trajeto, lá pelas dezessete horas. Trazia todos os dias (menos aos domingos) a correspondência, além de nos entregar o Diário de S. Paulo, que meu pai assinava e chegava de trem. Ah, os jornais diários não circulavam às segundas-feiras.

- Ouvia-se muito rádio naquele tempo. De dia, era preciso ter onda curta para sintonizar a Nacional do Rio de Janeiro, sem dúvida a campeã de audiência. Qualquer motor funcionando, fosse de máquina, fosse de carro passando na rua, provocava um barulho perturbador nas rádios de onda média. À noite, a situação melhorava e podia-se escolher entre a Nacional, a Mayrink Veiga, também do Rio, e a Tupi de São Paulo. Minha mãe acompanhou muita novela pela Nacional. Algumas vararam anos. Era indispensável ouvir-se o noticiário do Repórter Esso, “o primeiro a dar as últimas “, sob o alto patrocínio da Standard Oil Company of Brazil. Uma edição era pouco antes da uma da tarde, outra pouco antes das oito da noite, quando então entrava, com os acordes iniciais de O Guarani, de Carlos Gomes, a Hora do Brasil, que ia até as nove e era de transmissão obrigatória por todas as rádios do País. Hoje essa intervenção governamental se chama Voz do Brasil e dura meia hora.

- 1941 – um ano terrível de guerra, com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) dando a impressão de que dominariam o mundo. Apenas com a entrada dos Estados Unidos no conflito, em dezembro, começou a reverter-se a situação.

-1942 – outro ano doloroso. Navios mercantes brasileiros torpedeados no Atlântico Sul, com o País entrando na guerra, apesar da clara simpatia de Getúlio Vargas pelas ideias do nazismo e do fascismo. Dizem que o prêmio pela adesão meio forçada do Brasil aos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra, União Soviética) foi a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda.

- No segundo semestre do ano, uma reviravolta na vida de todos os brasileiros, com a mudança do padrão monetário: desaparecia o mil-réis e surgia o cruzeiro. Mudança radical, com o desaparecimento do tostão, do conto de réis, de moedas tradicionais. Réis não passa de outro plural de real, moeda antiquíssima que fora perdendo gradativamente o valor, a ponto de se criar o mil-réis. Até hoje há quem empregue conto com o sentido de real, mas na verdade um conto de réis era um milhão de antigos reais. Uma confusão daquelas. Felizmente, nós estávamos no quarto ano da escola e aprendíamos tudo com facilidade:

Um conto de réis virou mil cruzeiros.

Quinhentos mil-réis viraram quinhentos cruzeiros.

Mil réis viraram um cruzeiro.

Quinhentos réis viraram cinquenta centavos.

Fácil, não?

Em 1941/42, já não se usava o vintém (vinte réis), mas ainda circulava o tostão (cem réis), com que se comprava um picolé; o quinhentão (quinhentos réis), que dava para ir ao cinema, e o destão, corruptela de dez tostões ou mil réis, com que se fazia uma festa completa.

 

28/02/2015
emelauria@uol.com.br

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