TRASTE, RELATIVAMENTE
- Ih menino! Aquilo é um traste, só tem de bom a casca. Não foi uma nem duas vezes que D. Zélia me dizia isso do marido, só nas ausências dele. - Ele nunca te contou coisas feias? - Que coisas feias, tia? - Coisas. Quando ela lhe dirigia a palavra por obrigação, não o encarava nem gastava com ele os vocativos. Eu ainda não tinha consciência estilística do vocativo, mas sentia incompletas as frases, que algumas palavras – o nome da pessoa com quem se conversa, por exemplo – não podiam ser impunemente suprimidas. Moleques quando estavam de mal é que faziam tal qual minha tia com o marido. Ela não anunciava, por exemplo: “Janjico, a janta tá pronta”. Era apenas “A janta tá pronta”, mesmo que fosse ele o único a não saber da novidade. Para efeitos práticos tudo dava na mesma. Ele dobrava o jornal, com que se separava do resto das pessoas, lavava as mãos na pia da cozinha, sentava-se à mesa ali perto do fogão e começava a tomar sopa fazendo barulho, a mascar as coisas sem um dente sequer. A falta dos vocativos fazia muita diferença, eu intuía. Eu, visita constante das férias, mas criança ainda, não avaliava todo o peso do silêncio entre aqueles dois. É que me sentia bem naquela casa muito mais modesta que a minha, com pessoas se vestindo mais modestamente que nós, levando contudo imbatível vantagem: moravam em São Paulo, o maior centro industrial da América Latina, como lembrava cada banco de cada bonde da The São Paulo Tramway, Light and Power Co., que só mais tarde se transformaria no “polvo canadense”. Nem percebia eu a pobreza daquelas roupas, a simplicidade da alimentação, a alegria causada pelas coisinhas de comer mandadas por minha mãe, atulhando minha mala de papelão com jeito de couro. Ah, o partidarismo radical dos primos, todos solidários com a mãe, tolerando como podiam o pai. Às refeições (ele só jantava em casa e nem todos os dias) ele se dirigia impessoalmente aos presentes, mas apenas eu dialogava com ele. Os primos comiam de cabeça baixa e muito depressa. A tia demorava-se quanto pudesse no servir, creio que para não ficar ao lado dele. As primas bordavam para fora umas intermináveis toalhas que as obrigaram muito cedo a uns óculos feios. O primo, datilógrafo (dactilógrafo, dizia), labutava num escritório comercial, batucando oito horas uns ofícios formais, cheios de VV.SS. e de um Amo. atto. obro. que muito me intrigavam. Tudo numa Royal preta, pesada e gasta que conheci numa rara visita. Pela tia, pelas primas, adentrei a parte amena da história familiar. Pelo tio Janjico tomei conhecimento das felonias de uns, dos defeitos de outros. Mais decepções do que motivos de orgulho. Da mulher ele falava pouco, mas a biografou numa frase: - Zélia puxou à mãe, devota e seca. Não ama nem um pouco as belezas da vida. Comecei a desconfiar que as belezas da vida de tio Janjico eram as coisas feias de tia Zélia. Dono de suas horas, o tio Janjico. Com ele bati pernas pelo centro da cidade, conheci o horto florestal e o muito novo e distante aeroporto de Congonhas. Com ele, achei lindíssimo o cine Santa Helena e ingressei na nação corintiana em tarde de gala no Pacaembu. Ele foi quem me levou ao museu do Ipiranga e à catedral da Sé, escura e inacabada massa de pedra dominando a praça formigante de gente. - E hoje, tio? - Surpresa, menino. Surpresa. Num camarão com poltronas de palhinha e encosto de tecido branco, fomos parar em lugar longíssimo depois de percorrer uma avenida larga e deserta, apenas os trilhos do bonde no meio. Ao descermos no ponto final, ele abriu os braços e me apresentou como coisa sua aquela imensidão de água. ( Ao recompor a cena agora, gostaria que ele me tivesse dramaticamente anunciado em grego Thálassa! Thálassa! – como exclamaram os lutadores antigos ao reverem o mar salvador. Faltava-lhe, porém, o grego e o mar.) - A represa de Santo Amaro. Hoje vamos pescar. - As varas, as minhocas, tio? - Alugamos tudo. E se não pegarmos nada, compramos peixe... Como não gostar desse tio Janjico, feio, é verdade, mas capaz de me tratar como gente grande, contar histórias secretas de pessoas, chamar-me a atenção para a beleza própria de cada mulher? - Deixe o rosto para o fim. Mais importante é que tenham substância – pontificava professoral. (As coisas da tia ganhavam velada expressão verbal.) - Aonde foi que o traste te levou hoje? Eu não respondi. Fiquei olhando para a tia, que acabou retificando minimamente a pergunta, ocultando o sujeito da oração:
- Aonde foi que te levou ? Aí eu contava o roteiro do dia e ela até que ficava contente, porque revia no marido uns perdidos traços daquela bondade que ela e os filhos já não desfrutavam, fazia muito tempo. - Mas não te ensinou coisas, ensinou? Meu primo não falava espontaneamente com o pai. Não tinham o que conversar, justificava-se. Cheio de coragem, interrompi a tia, que lia um gasto livro de capa escura e empunhava um rosário. - Tia, por que traste? - Ora, porque sim. - Mas por quê? - - É só meio traste. Traste pra mim, pros filhos. Pros outros, pra você, fora de casa é outra pessoa. Nós quase nem vemos o dinheiro dele, que ganha bem, até. Esbanja por aí, com cerveja, em sem-vergonhices. Terminada mais uma temporada paulistana, eu voltava de trem para casa, com todas as recomendações possíveis passadas na estação da Luz pelo primo. “Cuidado com a baldeação em Campinas”. “Coma o lanche quando o trem parar em Cascavel”. “Não fique na plataforma do vagão com o trem em movimento”. Tinha eu quatorze ou quinze anos, mas era um tempo em que se podia viajar sozinho, sem medo e sem documentos. Tia Zélia e minha mãe se carteavam. Nunca soube o que minha mãe escrevia, mas as cartas recebidas e mostradas a mim e a meu pai eram compridas, engraçadas, cheias de pequenas novidades. Começo e fim sempre iguais, como igual o papel, o envelope, o modo de endereçar. “Em primeiro lugar desejo que esta va encontral-a bem de saude junto aos que lhe são caros. Nos por aqui vamos bem graças a Deus”. Nariz-de-cera dos legítimos, quem sabe herança do longínquo grupo escolar. Seguiam-se as miudezas da vida, dificuldades dela e dos filhos. E uma frase para mim cada vez menos enigmática, porque inevitável: “O mais como Deus é servido”. Aquele o mais só podia ser sinônimo de tio Janjico. Fecho propiciatório: “Rogando pela felicidade dos seus, despede com abraços a irman saudosa Zelia”, com uns arabescos abaixo da assinatura. O telegrama trazido por seu Zequinha, carteiro baixinho que usava farda cáqui e quepe: minha mãe, assustada antes de abri-lo, ficou passada depois. Telegrama sempre era coisa muito séria: MAMÃE ESTADO MUITO GRAVE AVISAR PARENTES CELINA Celina era a mais velha das filhas. Minha mãe só chorou, à espera de meu pai. - Telegrama assim já é anúncio de morte, resumiu ele. Estava morta mesmo a minha tia Zélia, enterrada num cemitério enorme, aonde fui uma vez. Dificultoso até para o primo encontrar o carneiro, igual a tantos, descuidado como quase todos. A casa sem ela se desmanchou, os filhos ficando longe o mais que podiam daquele pai-pessoa-estranha. Lá estive ainda uma vez e saí com tio Janjico, imutável no humor e nas ações. Levou-me a outro inesperado lugar - à indústria da Vila Maria que lhe consignava artigos para vender. Daí ele bater pernas por São Paulo toda, conhecedor de todas as linhas de bondes, de ônibus, de trens de subúrbio. - Mexo com tudo de arame. Gaiolas, viveiros, cestos, covos, armadilhas, varais portáteis, grades protetoras. E arame em rolos de todas as espessuras. - Covos, tio? - Covos. Percebi sua felicidade brincalhona porque eu não sabia o que era um covo. Só com o dicionário me apossei do sentido e da pronúncia do vocábulo assim descrito: covo (ó) era apenas “redil de pesca formado por esteiras em paus ou metal e munidas de sapatas de chumbo”. Deu para entender sem visualizar? Para mim não. Em todo caso, tratei de memorizar aquela definição para a hipótese, que não ocorreu, de meu tio me cobrar qualquer dia. - Um dia destes nós descemos pra Santos, no trem de cremalheira. Aí nem esperei pela consulta aos dicionários ( que ele chamava de pai-dos-burros): - Desembuche tudo direitinho e agora, tio! Ele riu a gengivas todas e me deu explicação mais ou menos aceitável sobre o sistema usado para os trens vencerem o desnível do planalto para o litoral. A verdade é que não chegamos a ir a Santos. Não coube a tio Janjico me proporcionar a trabalhosa descida com locomotiva e vagões de rodas denteadas. E não fomos por motivo de força máxima. Preferiria ter ficado com gripe, ter tido até uma dor de dentes daquelas, mas não perder a descida da serra por trem, junto com tio Janjico. Meu primo datilógrafo e eu estávamos de olho numa fita em cinema da moda, Rua São Bento, o Rosário. Descemos do bonde 23 atrás da catedral e caminhamos rumo à Praça da Sé. - Antes do cinema, venha ver uma coisa lá dentro daquele bar. Entramos no botequim movimentadíssimo, com gente servida em pé ao balcão ou sentada mais ao fundo em mesinhas cobertas de toalhas axadrezadas. - Vê bem quem está lá no cantinho da esquerda. Certeira a premeditação do primo, conhecedor dos hábitos do pai. A pessoa lá no cantinho da esquerda era meu tio Janjico em momento de traste. Ele, um copo de chope e uma mulher loira demais para ser verdadeira. Um braço dele envolvia o espaldar da outra cadeira; os dois se falavam bem de perto, com a naturalidade de quem praticasse ação habitual. - É uma das safadas do traste de meu pai. Por causa delas nossa vida tem sido miséria e vergonha. Roubando uma frase ao velho Machado que eu conheceria logo depois, na sala escura do cinema algumas vezes a nova feição de meu tio se interpôs entre mim e a tela. A morte antecipada que seus filhos lhe decretaram, vigorou até a vinda da morte de fato, da morte morrida, como ele dizia para esclarecer que alguém se fora naturalmente desta para outra. Ninguém em minha cidade foi avisado de seu tranqüilo modo de finar, durante o sono, alma leve, sem débitos nem remorsos. No reencontro com meu primo, tempos depois, o detalhe revelador da desimportância que assume um traste: um médico amigo, a pedido de alguém da família, autorizou rápido enterramento do corpo. - Você já imaginou – racionalizava meu primo – a gente velar horas e horas aquele defunto e ainda receber pêsames? (Texto original de 22 de novembro de 1986 e inédito até a presente data, 18 de dezembro de 2001)
28/01/2006 |