EUCLIDES DA CUNHA EM FACE DA LITERATURA

         A iniciativa de Álvaro Ribeiro de Oliveira Netto, coadjuvado por Maria Cristina Rocha de Sacchi, de  publicar  parte do vasto material disponível na Casa de Cultura Euclides da Cunha assume tal  importância, que apenas o tempo a avaliará corretamente.

         Criada em 1946 para regular as comemorações euclidianas de São José do Rio Pardo, a Casa de Cultura (quase sempre chamada “Casa Euclidiana”) transformou-se na depositária natural de toda a produção euclidiana elaborada e/ou apresentada em primeira mão nesta cidade.

         O resultado é que, através de muitas décadas, se foi acumulando acervo de alta valia, relacionado  não apenas com a biobibliografia euclidiana, mas também com as diversas áreas em que a obra de Euclides da Cunha tenha tido inserção.

         Diferentemente de tantos autores de livros apenas literários, Euclides em Os Sertões e nas outras obras suas, às vezes injustamente ditas “menores”, criou um universo que interessa, e muito, à História, à Sociologia, à Antropologia, à Geografia, à Ecologia, sem se falar na própria Literatura.

         A análise do vastíssimo arquivo disponível, cuja publicação agora se inicia com certa metodização, demanda a presença de especialistas que tenham não só a capacitação esperada, mas uma disponibilidade de tempo invejável. A idéia ambiciosa, mas não irrealizável, é que a cada mês de dezembro, ao longo de muitos anos,  venha a público um novo volume da revista Euclidiana, constituído apenas por conferências, palestras, artigos integrantes do precioso acervo da CCEC. A Euclidiana-1, que agora se publica, com enfoque na Literatura, traz uma seleta de estudos  datáveis entre 1938 e 1969. Um segundo volume trataria de Depoimentos, tendo, portanto, forte base histórica. Isso não quer dizer, contudo, que o material literário armazenado pela Casa de Cultura se tenha esgotado com esta primeira divulgação.

         Seria natural que os textos mais cuidados, em especial as conferências, dados ao conhecimento público aqui em São José do Rio Pardo, tivessem de início tido dois enfoques prioritários – o  estudo da biografia euclidiana e a localização do autor no mundo da Literatura.

         A atração pela biografia sempre  se explicou em face da morte trágica de Euclides. Sua rememoração nesta cidade, a partir de 1912, ligou-se emocionalmente ao triste fim de um homem nacionalmente famoso e admirado que aqui havia residido pelo período de três anos, tanto que a data-índice de todas as comemorações foi o 15 de agosto, dia de seu assassinato no Rio de Janeiro, em 1909.

         Em 1925, o 15 de agosto foi declarado feriado municipal sob a denominação de “Dia de Euclides da Cunha”. Era, não há dúvida, a adesão da comunidade ao espírito da frase “Por protesto e adoração”, cunhada e posta em voga por Alberto Rangel.

         Talvez não seja despropositado dizer que esse aspecto do preito à memória do escritor tenha tido e mantido por muito tempo um caráter religioso mesmo, associado às manifestações populares com a idéia de “romaria”. Pouco  sabia o povo sobre Os Sertões, mas deplorava sinceramente a perda de um homem de expressão nacional que aqui construíra uma ponte e um livro, aqui deixara poucos amigos e muitas lembranças.

         Não se pode avaliar que rumos acabaria tomando o euclidianismo rio-pardense, não fosse a providencial participação de dois intelectuais  de primeira plana – Oswaldo Galotti e Hersílio Ângelo. A feliz coincidência da radicação dos dois em São José do Rio Pardo no final dos anos trinta emprestou ao euclidianismo local  um sentido crítico salutar, seja pelo inquieto espírito de pesquisa de Galotti, seja pela formação universitária específica de Hersílio. Um, recém-saído da Faculdade Nacional de Medicina, do Rio de Janeiro; outro, egresso da segunda turma de formados em Letras pela Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Os dois contiveram, sem maiores embates, uma provável tentativa de hegemonia provinciana, tomado este adjetivo no mais pejorativo de seus sentidos, ou seja, referente ao apego a fórmulas sem renovação, à resistência de aceitação de idéias novas.

         Oswaldo Galotti e Hersílio Ângelo, talvez sem a total percepção do significado de  suas próprias escolhas, deram à Semana Euclidiana – e por conseqüência ao euclidianismo rio-pardense --  um toque de cosmopolitismo que se deve considerar a causa determinante de sua permanência  e de sua capacidade de renovação, de adaptação que a levou a manter certa unidade na variedade, através de mais de sessenta anos de ininterrupta realização. Não fosse isso, essa dedicação a Euclides e sua obra teria desaparecido, como ocorreu com dezenas de outras tentativas semelhantes,  envolvendo esforços em favor da valorização da vida e da obra de outros escritores nacionais.

         Assim, ainda que não esquecidas as circunstâncias de um trágico fim e não evitados os surtos de certa literatice comum a  muitos intelectuais brasileiros que aqui vieram ao longo de tantos anos, é possível antever-se já nos temas da Maratona Intelectual Euclidiana, desde a sua criação em 1940, a procura do estudo de outros aspectos, que não os literários, na obra euclidiana. Daí certa relação com o convite a historiadores, sociólogos, geógrafos, políticos, educadores, filósofos para serem os conferencistas ou oradores nas Semanas Euclidianas.

         Também a partir da implantação dos Ciclos de Estudos Euclidianos (1960), idealização de Dermal de Camargo Monfré e Márcio José Lauria, nasceram trabalhos de muita abrangência temática, embora se deva reconhecer que boa parte dos professores do Ciclo eram professores de Português e de Literatura – o que privilegiou os estudos de natureza literária, lingüística e estilística de tantos textos de Euclides.

         Não faltarão nos trabalhos que integram esta revista pioneira, exemplos significativos de inovadora focalização literária da temática euclidiana. Ressalvados exageros inevitáveis, como o de Guilherme de Almeida em 1946, na sua busca de “ versos” decassílabos ou alexandrinos para comprovar a “poesia em Os Sertões, o tempo foi refinando uma idéia que intuitivamente tivera o próprio Euclides: considerar Os Sertões – e por extensão os seus outros livros --  como apenasliterários” seria fórmula até calculada de diminuir o valor de obra tão original. Eleito para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro logo após a publicação de Os Sertões (1902), Euclides tratou de formas diferentes o seu efetivo ingresso nas duas respeitáveis instituições. De imediato cuidou da  posse no Instituto, ao passo que a investidura  na cadeira n.º 7 da Academia  se deu em 1906. É que repugnava a Euclides ver seulivro vingador correr o risco de ser tratado como mais um produto do beletrismo vigente, ou ser catalogado naquela Literatura considerada “o sorriso da sociedade”, no fátuo dizer do escritor português Júlio Dantas.

          Exatamente por ser Euclides da Cunha autor mais ligado à cultura do que à literatura e por  abordar, não ficcionalmente,  temas antes de caráter histórico, sociológico, antropológico, é que todos os esforços  de enquadramento da obra euclidiana nas classificações e nos esquemas  literários apresentam dificuldades incomuns.

         De início, como considerar Os Sertões? Não é romance, embora nem faltem autores que assim o considerem. Mais defensável, mesmo que sem unanimidade, é ter o livro como um ensaio fiel aos bons parâmetros do oitocentismo: uma tese é lançada na “Nota preliminar” – Canudos foi um crime; denunciemo-lo. A tese é desenvolvida ao longo de todas as suas quatrocentas e tantas páginas e se dá como suficientemente provada na última linha do texto – “... É que não existe um Maudsley para os crimes e as loucuras das nacionalidades”.

         Obra ficcional? A hipótese até repugnou alguns estudiosos, mas Afrânio Coutinho a defendeu tranqüilamente aqui e no belo estudo incorporado à fortuna crítica de Os Sertões da Aguilar, desde 1966.

         Se não obra ficcional, como aceitar o tratamento “artístico” dado por Euclides a seu texto principal? É de se pensar num processo de transfiguração verbal, em que as frases atingem momentos de rara beleza com a habilidosa exploração do que mais tarde se chamaria função poética da linguagem, expressa nos estranhamentos e  nos processos retóricos de que fala Alfredo Bosi: antinomia e intensificação. A par disso tudo,  alternâncias de denotações e conotações, de metáforas e personificações, para se atingir a plurissignificação semântica sem que, apesar disso, se desmanche a precisão vocabular, a barroquização da frase, a escrita com cipó, na observação nem sempre bem-assimilada de Joaquim Nabuco...

         Abstraídas todas estas observações, de  fundamentos teóricos das mais variadas origens, pode-se chegar ao âmago da questão: por que a permanente atualidade de uma obra difícil como Os Sertões? Sem dúvida por causa de suas qualidades literárias, de sua literariedade, reconhecida a   impossibilidade de separar-se, ainda que para mero exame, a forma do fundo. O fundo está na forma, garantem os formalistas e os esteticistas.

         E, glória suprema de todos os livros que ganham a imortalidade: perpassa todas as páginas euclidianas uma alta função literária – a capacidade de sintonizar pessoas de todos os lugares e de todas as épocas. Através deste poder sintonizador, a verdadeira obra literária consegue comover, exaltar, revoltar, conquistar novos e novos leitores. Os velhos dramas humanos, fundamentalmente resumíveis a meia dúzia, são redescobertos pela leitura das obras-primas de sempre e fazem renascer nos homens um forte sentido de justiça e de solidariedade social. Bastaria prestar-se a devida atenção aos gestos fisionômicos e  à genuína revolta de um adolescente ou de um jovem estudante ao tomarem conhecimento, aqui em São José do Rio Pardo, das invectivas de Euclides contra os poderosos de sempre, contra os exploradores da miséria e da ignorância  dos indefesos brasileiros, nordestinos ou não.

         Por isso ninguém lê indiferentemente Shakespeare, Camões, Goethe...

         Nem a  Euclides da Cunha.

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Márcio José Lauria, ex-diretor da Casa de Cultura Euclides da Cunha e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Pardo.

Atualmente, professor de Teoria da Literatura do Curso de Letras da UNIP, câmpus de São José do Rio Pardo; presidente do Conselho Euclidiano.

 

27/11/2004
(emelauria@uol.com.br)

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