Deu num Caderno 2

 
Vaso de flores

 

O Caderno 2, do Estadão, sabidamente um repositório de amenidades, tem algumas partes de leitura necessária, como as boas tiradas de Tutty Vasques, de um humor inteligente e bem trabalhado, que faz o Zé Simão da Folha parecer um desbocado inconveniente. Obrigatória a leitura de Luís Fernando Veríssimo, especialmente pela sua capacidade de tratar tanto de assuntos desimportantes quanto de temas dos mais ásperos da história humana. De vez em quando, Arnaldo Jabor se torna insuportável, mas sua inteligência é inegável.

Um dia destes, resolvi apertar um Caderno 2 como se fosse um limão daqueles bem suculentos: vejam aí a limonada que consegui.

*

Está aberta em São Paulo uma exposição de quarenta e oito trabalhos históricos do grande pintor fluminense Guignard (Alberto da Veiga Guignard, 1896-1962). Um vaso de flores foi comprado numa galeria de Londres por quase oitocentos mil dólares. Quando o comprador, brasileiro, quis embarcar o pequeno quadro para o Brasil, ficou sabendo que precisava pagar duzentos mil dólares de imposto de importação.

Há outras obras dele que hoje alcançam até seis milhões de reais. Mas o que entristece em meio a tanto reconhecimento ao trabalho do artista tão melancólico e retrospectivo são alguns lances de sua vida real: tinha lábios leporinos (defeito facial que hoje se resolve com uma plasticazinha sem risco), foi abandonado pela mulher em plena lua de mel (sabe-se lá por quê), o padrasto passou-lhe a perna na herança  e telas suas  foram trocadas por bebidas, numa dura fase de dependência alcoólica.

*

Washington Olivetto, nome de prestígio na publicidade nacional, nega-se a ser o marqueteiro de qualquer político. Simples o seu lema: “Só faço propaganda de produto que o consumidor possa devolver”.

Já imaginaram esse salutar princípio aplicado a candidatos eleitos?  Contou mentira,  explorou a boa fé popular, cometeu corrupção ativa ou passiva, o fulano é expulso da Câmara, da Prefeitura, da Assembleia, do Governo estadual, do Congresso, da Presidência, como se  pode tirar de circulação  qualquer propaganda tida como enganosa... A instabilidade institucional tomaria conta do Brasil, do Oiapoque ao Chuí, de Xapuri a Moçoró, ou seja, de norte a sul, de oeste a leste!

*

Uma frase de Olivetto que dá o que pensar:  Candidatos do tipo Jânio, Brizola e Lula são homens-agência, dos quais o publicitário apenas disciplina o lado intuitivo. Eles sabem o que querem e impõem suas teses.   Dilma não é isso, o que torna mais difícil trabalhar por ela. Muitas vezes, acabam predominando os pensamentos do marqueteiro, não os da candidata. Marina vive um momento favorável da “emocionalidade”, causada pela morte de Eduardo Campos. Não bastasse isso, ainda reforça essa situação incomum o que ela anda lembrando enquanto chora: “Como é que eu, que muitas vezes passei fome na minha infância e juventude, iria pensar na extinção da bolsa-família?”. A estratégia do trabalho de Aécio como candidato estava toda preparada para a esperada presença de Eduardo Campos no pleito. O ex-governador de Pernambuco, bem votado, deveria provocar o segundo turno e depois se aliar ao mineiro. Ou seja, a morte de Eduardo prejudicou profundamente Aécio e fez o papel de “providência divina” para as adormecidas pretensões de Marina.

*

Estatística nefasta: a Academia Americana de Pediatria, relata Lúcia Guimarães, alertou o público sobre o perigo corrido por crianças que nos Estados Unidos passam sete horas por dia diante de alguma tela – TV, computador, smartphone, tablet ou o que valha. Essas horas são associadas à obesidade, à queda do desempenho escolar e distúrbios do sono. O bom senso admite no máximo duas horas por dia, ainda assim frente a programação de qualidade.

*

No Rio de Janeiro, um casal jovem vai se informar sobre uma creche onde pretende pôr um bebê de dez meses. A coordenadora conta maravilhas da atenção dada aos pequenos. Por exemplo: toda segunda-feira trazem algo de casa para compartilhar com os coleguinhas. Muitos trazem DVDs. “Nosso bebê nunca viu tevê...”  A coordenadora se espanta e compara: “ A televisão é igual a Coca-Cola, a gente tenta evitar  mas uma hora não tem jeito...” –  Título do sério artigo de Lúcia Guimarães: “Raciocínio em frangalhos”. Preocupante para os pais e educadores dessa geração que cresce por aí.

*

Gostei de saber que alguém se lembrou de Graciliano Ramos, um nome de nossa literatura, injusta e perigosamente esquecido. Com Memórias do cárcere, Vidas secas e Angústia, o alagoano se coloca entre nossos melhores escritores. Agora é lançado no Museu da Imagem e do Som, de São Paulo, o volume Conversas de Graciliano Ramos, em edição de luxo. Pelo que li  há muito tempo em Graciliano em suas cartas (edição especial fora do comércio, preparada para MPM Comunicações, em exemplar numerado que me presenteou Moisés Gicovate, no longínquo 20 de janeiro de 1981), sei que GR falava de tudo, contrariando a imagem sisuda, focada apenas em sua obra mais séria.

Nota triste: uma caneta autêntica de Graciliano foi furtada antes de aberta a exposição de lançamento do novo livro. O objeto estava visível na cenografia montada no centro da exposição, que reproduz um ambiente de trabalho do autor, com seus utensílios originais. Não havia nenhuma espécie de proteção entre o público e os objetos.

*

Convenhamos: é acreditar demais na honestidade de pessoas até letradas, que frequentam exposições e gostam de autores como Graciliano. Nunca será tarde lembrar:  a Copa Jules Rimet, que o Brasil conquistou em caráter definitivo, foi furtada e derretida. A taça era de ouro maciço, o que não deve ser o caso da canetinha que algum ardoroso gracilianista  afanou com a melhor das intenções.

*

Retiro algumas notas autobiográficas de Graciliano que aparecem nas orelhas da sobrecapa do livro que ganhei de Gicovate em 1981:

Nasceu em 1892, em Quebrangula, Alagoas. Casado duas vezes, teve sete filhos. Altura 1,75. Sapato 41. Colarinho 39. Prefere não andar. Não gosta de vizinhos. Detesta rádio, telefone e campainhas. Tem horror às pessoas que falam alto. Usa óculos. Meio calvo. Não tem preferência por nenhuma comida. Indiferente à música. Não gosta de frutas nem de doces. Sua leitura predileta: a Bíblia. Escreveu “Caetés” (seu primeiro livro) com 34 anos de idade. Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados. Gosta de beber aguardente. É ateu. Indiferente à Academia. Odeia a burguesia. Adora crianças.  Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Raquel de Queirós. Gosta de palavrões escritos e falados. Deseja a morte do capitalismo. Escreveu seus livros pela manhã. Fuma cigarros “Selma” (três maços por dia). Inspetor de ensino, trabalha no “Correio da Manhã”. Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo. Esteve preso duas vezes. Escreve à mão. Tem poucas dívidas. Quando prefeito de uma cidade do interior (Palmeira dos Índios), soltava os presos para construírem estradas. Espera morrer com 57 anos. (Morreu com sessenta, a 20 de março de 1953.)

*

Graciliano. Que figura! Tenho a obra essencial dele, encadernada, em dez volumes, publicada no ano de sua morte, pela Livraria José Olímpio Editora. Presente de uma namorada, que, no comecinho de 1954, teve a ousada ideia de perguntar ao Prof. Hersílio Ângelo o que ela deveria me dar de presente de aniversário. Saiu cara, porém muito proveitosa, a sugestão do mestre.

 

27/09/2014
emelauria@uol.com.br

Voltar