1908 – 29 de setembro – 2008

Depois de amanhã, 29, será a data exata do centenário de morte de Machado de Assis, geralmente apontado como o maior nome da literatura brasileira.

Muito se tem escrito sobre ele, sendo ponto pacífico que o maior número de estudos de toda natureza sobre escritores nacionais cabe, mesmo,  ao autor de Dom Casmurro.

A página sobre Machado, no site da Academia Brasileira de Letras, coloca à disposição do estudioso material tão copioso, que não será exagero dizer-se: uma vida toda não daria para ler-se e estudar-se tudo aquilo.

Diferentemente da bibliografia sobre o nosso Euclides da Cunha, quase toda ela de tom laudatório, o que se escreveu a respeito de Machado de Assis vai do muito favorável ao francamente condenatório.

Lembro-me a esse propósito de crônica do hoje esquecido Vivaldo Coaracy, que se assinava V. Cy, no Estadão, em que reproduz o que lhe contara, fazia muito tempo, um escritor carioca, íntimo de Machado. Este o convidara a um passeio de carruagem de praça, um tílburi,  não lhe informando aonde iriam. Acabaram subindo a um dos tantos morros que circundam o Rio de Janeiro. A certa altura Machado pediu ao cocheiro que parasse e o esperasse. O amigo acompanhante fez menção de sair da carruagem, mas foi convidado a ficar nela, aguardando  um pouco.  Machado saiu sozinho, tomou um dos atalhos que subiam e demorou-se perto de meia hora. Ao regressar, nada disse ao amigo, que por sua vez  lhe respeitou o silêncio. Foi apenas quase ao término da viagem que Machado rompeu o mutismo:

- Fui a um velório, velório de uma mulher que me serviu de mãe...

Tratava-se de Maria Inês, a segunda mulher do pai de Machado. Órfão de mãe em tenra idade, M. de A. encontrou nela muito afeto e muito carinho. No entanto, pelo tom da narrativa de V. Cy, fica claro que  o grande escritor não falava abertamente de suas origens humildes, do pai, da madrasta, da infância pobre, dos estudos esporádicos e informais.

Pensando-se bem, nos dias de hoje não haveria motivo para alguém ocultar esses aspectos de privações que, ao contrário, só enobrecem e valorizam os esforços despendidos em favor da elevação econômica,  moral e intelectual.

Enquanto o traço dominante na crítica literária foi o biográfico, o histórico ou o impressionista, não poderia mesmo deixar de haver grande disparidade de opiniões, porque também os estudiosos, mal apetrechados para análises isentas, dividiam-se, como até hoje se divide o público leitor: ou consideravam M. de A. como dos maiores escritores da língua (foi o caso de José Veríssimo), ou apenas não suportavam  seu estilo, seus temas, sua maneira incomum de encarar nossos fatos históricos e nossas mudanças sociais. Essa crítica por vezes rancorosa tem como principal nome Sílvio Romero, para quem Machado era falto de profundidade e pretensioso no modo de escrever.

Foi preciso que a crítica avançasse pelos caminhos mais consistentes do esteticismo, do formalismo, da análise estrutural do texto, para se formar em torno da obra de Machado uma como unanimidade, porque pôde, menos arbitrariamente, observar alguns de seus romances e de seus contos como páginas de superior elaboração, dotadas de estruturas complexas, bem diferentes do terra-a-terra das composições de Alencar, Macedo, Bernardo Guimarães e outros então campeões da fácil preferência popular.

Tive como professor de Literatura na escola secundária e até muito depois dela, em contatos pessoais de grande valia para mim, a um machadiano de “boa casta”, para usar a  elogiosa classificação que o próprio Machado aplicou a um personagem seu. Malgrado a  indiferença ou falta de alcance da maioria dos alunos, uma atenta minoria deixou-se impregnar pela consistente admiração que o Prof. Hersílio Ângelo votava ao escritor fluminense.

Dessa adesão inicial a um estudo permanente da obra de Machado e de seus críticos para mim foi um passo natural. Primeiro, os romances da fase romântica (Helena, Iaiá Garcia, A Mão e a Luva); depois  os romances do realismo psicológico (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba); o triste livro de saudade em que evocou seu longo convívio com a esposa Carolina (Memorial de Aires); os poemas reflexivos ou de evocação (“Uma Criatura”, “A Mosca Azul”, “A Carolina”); os contos sutis, cheios de subentendidos e segundas intenções (“Missa do Galo”, “O Alienista”, “A Cartomante”, “Idéias de Canário”), as crônicas, a correspondência,  o teatro, a crítica literária...

Do debruçar interessado e sem pressa sobre esses textos, voltava informado da técnica de composição, da urdidura dos enredos, da fixação dos temas, da caracterização das personagens, das discussão dos principais fatos lingüísticos. Encontrei em Machado  o escritor profundo, o modelo da boa linguagem, capaz de unir o rigor da frase clássica, que ele conhecia bem, com a fluidez de um abrasileiramento que tornou sua escritura “moderna”.

A admiração por Machado, além de não ser para mim atitude passageira, rendeu-me bons proventos. Por uma dessas felizes conjunções do acaso, em meu concurso de ingresso no magistério estadual pude discorrer, na prova de erudição,  sobre um tema de meu particular agrado – as personagens femininas nos romances de Machado de Assis.

Estudar Machado de Assis nunca foi um modismo, desses que nascem com força, sobrevivem algum tempo e depois desaparecem sem deixar marcas sensíveis. Ao contrário, o tempo só vem demonstrando que um autor da sua profundidade temática, sutileza e penetração psicológica como que destoa do pobre meio cultural em que despontou. Enquanto brasileiros e portuguesas ainda se comprazem com a anedota pesadona, com a chalaça, Machado de Assis, no final do século XIX, oferecia a seus leitores um humour à inglesa, refinado e inesperado, que ele foi buscar em fontes inacessíveis à quase totalidade dos autores nacionais.

Daí as revelações, comuns até hoje, de tantos leitores que na maturidade “descobrem” o velho Machado. Não só os que se encantam com a enganadora simplicidade de sua frase, nem apenas os que caem  no fascínio da sua Capitu, a ponto de travarem cerradas discussões a respeito de ela haver traído, ou não, o pobre Bentinho, como se Capitu e Bentinho tivessem superado a simples condição de criaturas ficcionais.

Mais do que desses valores de ordem lingüística ou literária os textos machadianos são boas fontes de estudos psicológicos. Karl Scheide, doutor em Psicologia pela Universidade da Califórnia e responsável por cursos de pós-graduação em Psicologia Social, não é de hoje que vem desancando os psicólogos brasileiros, acusando-os de se apegarem excessivamente a Freud e Skinner. Aconselha-os a apelarem para a criatividade, a desenvolverem novos modelos e novas teorias, lastreados na cultura nacional. E arremete com declarações inesperadas:

- O psicólogo brasileiro mais criativo, com mais visão das coisas,   é Machado de Assis. Seus romances têm nível psicológico ótimo. O Alienista deveria ser leitura obrigatória para todos os psiquiatras. Nas minhas  aulas de motivação, nos Estados Unidos, uso Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde Machado demonstra grande conhecimento dos valores humanos.

Mas, conhecedor do espírito brasileiro, Scheide ressalva:

- Não sei se poderia usar Machado de Assis num curso de Psicologia aqui no Brasil, sem ser alvo de zombarias.

A verdade é que também no futuro a alma humana viverá os mesmos dramas que Machado catalogou na rica variedade de  tipos que criou e deu vida através da palavra, apenas.

 

 

27/09/2008
(emelauria@uol.com.br)

 

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