Arqueologia rio-pardense (Todas as peças têm ao menos sessenta anos)
· O sujeito solteirão, gordo e careca tinha como grande prazer da vida subir no arvão e de lá ficar apreciando o férvido namoro do casal tão bonito, que acabou tendo uma penca de filhos. O atento observador dos prazeres alheios morreu como viveu: solitário.
· A professora era mirradinha e feia, mas ganhava bem. Acabou sucumbindo à sedução do jogador de baralho, que todos sabiam ser um droga. Ela nunca se queixou nem das facadas que ele lhe dava, nem das infidelidades que ele cometia. Não podia sequer alegar ignorância de nada.
· A outra professora, majestosa no andar e caprichosa no vestir, era de vida pregressa indevassável. Sabia-se que tinha uma filha, mas marido não. Morreu em idade avançada, guardados todos os segredos do passado remoto.
· A jovem que tinha uma cara triste por natureza, sempre mostrou inclinação por jogadores de futebol. Primeiro foi o goleiro, logo vetado pela família; depois o zagueiro que um belo dia, sem mais nem menos, sumiu da cidade, contratado por clube de longe. Bem que ela o esperou por bom tempo. Desiludida de tudo, acabou casando com um sujeito que nada sabia de futebol. Ela morreu muitos anos depois, primeiro do que o marido, mas nunca pôde disfarçar o tédio que se abateu sobre todos os seus dias.
· O sujeito era bom, muito bom, no desenho e na pintura. Acabou se enrolando num namoro que deu muito o que falar. Tanto, que um bancário pra lá de pudico proibiu, isso mesmo, proibiu a noiva de manter qualquer contato com a amiga de infância, a namorada do artista. Os dois casais encheram as respectivas casas de filhos. O bancário manteve pela vida toda a desaprovação moral ao ardoroso artista. As mulheres nunca mais se falaram.
· As duas mocinhas eram de irmandade que tinha um sinal distintivo: todas sete ganharam nomes iniciados pela mesma letra. A D-4 formava belo par com um beque de espera (como se chamava o líbero) do Rio Pardo F.C. De repente, não mais que de repente, ela começou a definhar, definhar, até acabar morrendo de tuberculose, isso na flor dos anos. Foi um episódio que abalou a cidade, porque lembrava enredo daqueles dramalhões mexicanos que faziam pessoas molhar lenços no escurinho do Cine Pavilhão XV de Novembro. O enterro dela foi apoteótico. O beque de espera viveu bem mais de cinquenta anos. Casou e não teve filhos.
· A D-3 desfilou garbosa, por numerosos finais de semana, pelo jardim da praça, exibindo o namorado metido em vistoso uniforme de aspirante a oficial. Sabe-se lá o que aconteceu na vida dele, mas o fato é que ele por carta pôs fim ao promissor namoro. Ela sofreu o baque e teve o apoio da mãe bravíssima e do pai generoso. Mudou-se para São Paulo, onde se casou e foi medianamente feliz. Tenho certeza de que o marido jamais envergou qualquer uniforme, porque não passava de reles funcionário de repartição civil.
· Pacienciosíssima a professora de Música no curso ginasial. Bem que ela se esforçava por ensinar àqueles meninos como solfejar, como integrar harmoniosamente o orfeão, como levar a sério aquelas aulas destinadas à elevação cultural e à afinação dos gostos. Qual o quê. Nem o medo de reprovação havia para meter um pouco de ordem naquela horda de bárbaros; por isso mesmo a sala era uma gandaia. Por vezes, no meio do falatório e de tanta atenção dispersa, ela haveria de pensar na maneira pouco civilizada em que se transformaram seus esforços despendidos nos duros cursos feitos em Milão, Itália.
· A sedutora normalista ofertou a seu incrédulo namorado uma enormíssima fotografia colorida, encaixilhada, ela envergando generosa blusa tomara-que-caia. A mãe do namorado bufava de raiva sempre que via aquela provocação, como que entronizada no alto de um armário. Quando o ousado namoro foi rompido (promessa a Santa Rita! – dizia a mãe), ela não teve dúvida: por conta e risco, tirou a foto de seu lugar de honra e fez tudo para que seu filho a devolvesse o mais rápido possível à derrotada candidata a nora.
· Bem diferente de hoje a quadra da Rua Silva Jardim que desembocava na Praça Prudente de Morais. Sumiram a Casa Vigorito, armazém de secos e molhados; a selaria de Gim Marin, seus arreios e bolas de futebol, aquelas de capotão e tentos; a ferraria do velho Carratto e os forçudos filhos a malharem (com marretas) o dia inteiro; a sapataria de Nicola Crudi, com meias-solas a ponto e a prego; a colchoaria de Benjamin Bilotta, hábil em lidar com um capim especial, muito próprio para encher duras almofadas e colchões vendidos a preços populares; as casas de José Guirro, Maurílio Bazilli, Maria de Melo e o marido Domingos Ceconello, alto, forte, motorista de caminhão.
· Todos dormindo, dormindo profundamente.
27/08/2016 |